Pra que mentir?
Valor Econômico
19/07/2013

Pra que mentir?

Por Marsílea Gombata | Para o Valor, de São Paulo
 
AP / AP

 

"Desculpe o atraso, peguei um engarrafamento terrível." "Perdão por não ter ido ao seu aniversário, mas tive de trabalhar o sábado todo." Atire a primeira pedra quem nunca desrespeitou o oitavo mandamento - "Não levantarás falso testemunho" - e não lançou mão de mentiras para acobertar uma verdade possivelmente danosa às relações sociais se revelada - como a preguiça de levantar cedo da cama ou mesmo de ir a uma festa nem tão legal assim.

Ferramenta necessária à vida humana, a mentira que ajuda a conviver em sociedade e burlar regras sem (tanta) culpa tem origem no contexto do pecado original. Desde que Adão jogou a culpa em Eva e esta jogou a culpa na serpente por terem comido o fruto proibido, como lembra o sociólogo Alexandre Werneck no recentemente lançado "Desculpa - As Circunstâncias e a Moral das Relações Sociais", passamos a recorrer a desculpas em nome do desejo de não ofender nossos semelhantes, da preservação das relações estabelecidas e, portanto, da manutenção da paz. Assim, seja ao justificar um atraso, aprovar o figurino desconexo de uma amiga ou elogiar a comida sem gosto, mentimos e enganamos quem nos cerca de forma corriqueira.

"A vida social requer desonestidade. Uma pessoa que sempre disser a verdade será banida socialmente, viverá e morrerá sozinha", afirma David Smith, professor de filosofia da Universidade de New England, nos Estados Unidos, e autor de "Less Than Human: Why We Demean, Enslave, and Exterminate Others". E mais: "Alguém que sempre falasse a verdade a si mesmo possivelmente ficaria louco. A vida é difícil, e o autoengano nos ajuda a levá-la".

Recorremos a tal prática, segundo o psiquiatra e presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, Alvaro Ancona, para preservar nossa "máscara social", aquilo que Carl Jung denominava persona. Ele diferencia, no entanto, a mentira social da patológica. "Enquanto a primeira busca um ganho afetivo explícito, a segunda ocorre quando se escondem aspectos da identidade ou propósitos. Assim, mentir para evitar que alguém se chateie é bem diferente de tentar vender um terreno que não existe."

A mentira patológica, Ancona acrescenta, pode ocorrer quando há um quadro de transtorno de personalidade antissocial, mais comumente conhecido por psicopatia. Seriam pessoas com maior facilidade para mentir, pois não têm empatia e não conseguem se colocar no lugar do outro, como geralmente fazemos.

No âmbito geopolítico, líderes engajados na difusão do medo, lembra John J. Mearsheimer no livro "Por que os Líderes Mentem", também lançaram mão de mentiras "para criar na mente da população uma ameaça quase inexistente". Como as inverdades entoadas pelo governo de George W. Bush para justificar a necessidade da guerra no Iraque. "Indivíduos-chave no governo Bush que pressionaram para que os EUA invadissem o Iraque antes de 19 de março de 2003 afirmavam estarem certos de que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa", o que mais tarde acabou se mostrando mentira. Segundo o cientista político americano, Bush seguiu os passos de predecessores como Franklin D. Roosevelt, que mentiu sobre um incidente naval de 1941 com o intuito de envolver os EUA na Segunda Guerra. Um exemplo de versão oficial envolta em nebulosidade fundamental para a edificação do país como potência, na visão do jornalista britânico Jeremy Campbell, que escreveu "A Saga do Mentiroso: Uma História da Falsidade" (2001). "Os EUA se tornaram um império graças, em parte, ao fato de ninguém poder definir exatamente o significado da palavra verdade. James K. Polk, seu 11º presidente [cuja administração foi marcada pelo expansionismo territorial], por exemplo, era mestre em semiverdades enigmáticas, que até hoje lhe rendem defensores."

"A vida social requer desonestidade. Uma pessoa que sempre disser a verdade será banida socialmente, viverá e morrerá sozinha"

Mas, mesmo cientes da existência de versões nem tão verdadeiras, estaríamos dispostos a abrir mão da mentira? Possivelmente não, arrisca dizer Smith, ao denunciar artifícios e dissimulações na vida cotidiana, tais como maquiagem e cirurgias estéticas, que seriam versões amplificadas da mentira. "A mentira nos ajuda a conseguir o que queremos, a sermos mais populares, [a parecer] mais ricos e mais sexualmente desejáveis. Mentir é um passaporte para o sucesso."

Ao fazê-lo, afirma a psicóloga Mônica Portella, deixamos vazar pistas no campo comportamental, como gestos e reações não verbais que vão desde variações de intensidade da voz e pausas mais frequentes no discurso até sons que não fazem parte da língua, como risadas e suspiros. "Não existe um padrão. Alguns apresentam vários sinais denunciantes e outros conseguem mentir mantendo contato ocular", diz a autora de "Como Identificar a Mentira - Sinais Não Verbais da Dissimulação".

Enquanto pesquisas britânicas do Museu da Ciência de Londres chegaram à conclusão de que o homem mente, em média, três vezes por dia - o equivalente a 1.095 mentiras por ano - contra duas mentiras diárias das mulheres - cerca de 730 anuais - e estudos americanos apontaram que mentimos em cerca de 25% das interações que fazemos, a realidade brasileira mostrou que as mulheres percebem melhor a mentira, enquanto os homens mentem melhor, ou seja, sem deixar tantas pistas. "A mulher tem uma percepção mais global e consegue notar vários aspectos ao mesmo tempo. O homem se prende a uma característica de cada vez", explica Mônica ao sublinhar atributos femininos como intuição e sensibilidade.

Como, então, identificar quando uma desculpa é mentirosa ou genuína? Segundo Smith, enquanto desculpas seriam razões que damos para explicar determinado comportamento, mentiras fariam um falso retrato da realidade. A distinção também é contemplada por Werneck, para quem a desculpa funciona como "um operador linguístico usado quando admitimos que fizemos algo errado, mas dizemos que não somos responsáveis por aquilo".

Mas, atenção: vínculos afetivos e altos níveis de intimidade são avessos à detecção de inverdades. Quanto maior o envolvimento emocional com o interlocutor, menor a capacidade de descobrir mentiras. Assim, explica Mônica, se um especialista em comportamento não verbal tem 80% de chance de identificar quando alguém está mentindo, quando existe envolvimento afetivo essa capacidade de detecção cai para 20%, porcentagem equivalente à taxa de chute. "Ou seja: o especialista consegue saber se uma pessoa no trabalho está mentindo, mas não a mulher dele."

Estamos, portanto, mais cercados de mentiras do que supõe nossa ingênua percepção. A mentira é tão parte do universo humano quanto a verdade.

 

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