Marcas de uma crise global
Valor Econômico
06/09/2013

Marcas de uma crise global

Por Sergio Lamucci | De Washington
 
AP / AP
Lehman, 15/9/2008: crise começou de fato em meados de 2007, com os problemas no mercado de hipotecas de alto risco

 

O colapso do Lehman Brothers completa meia década no dia 15, mas as marcas da crise que conheceu o seu o auge com a falência do banco de investimento em 2008 continuam evidentes na economia americana - e também na mundial. O sinal talvez mais eloquente é o nível dos juros básicos nos principais países desenvolvidos, que seguem no chão. Nos Estados Unidos, a taxa básica está próxima de zero desde dezembro de 2008, indicação clara da fragilidade da recuperação da atividade econômica. O desemprego segue em níveis elevados, especialmente na Europa, mas também nos EUA, onde ainda há 2 milhões de postos de trabalho a menos do que no começo de 2008. O sistema financeiro americano, por sua vez, está em melhor forma que o europeu e muito menos frágil do que no ápice das turbulências, embora ainda haja questionamentos sobre a real solidez dos bancos, que seguem emprestando pouco.

A crise começou de fato em meados de 2007, com os problemas no mercado de hipotecas de alto risco, o chamado subprime. Foi o início do estouro da bolha imobiliária americana, alimentada por juros baixos demais e falta de regulação do sistema financeiro. Mas tudo piorou, e muito, depois da quebra do Lehman Brothers. "Virtualmente, toda a discussão sobre a crise financeira divide a história em duas épocas: 'antes do Lehman' e 'depois do Lehman'", diz o ex-vice-presidente do Federal Reserve Alan Blinder no livro "After the Music Stopped", publicado neste ano.

Em março de 2008, o Fed tinha facilitado a compra do Bear Stearns pelo J.P. Morgan. No começo de setembro, o governo americano tinha assumido o controle das agências de financiamento imobiliário Fannie Mae e Freddie Mac. Com esses precedentes, a expectativa generalizada era de que outras instituições em apuros também seriam resgatadas. Não foi o que ocorreu no caso do Lehman.

A ideia do governo americano era encontrar uma solução privada para o banco, sem envolvimento de dinheiro do contribuinte. Então secretário do Tesouro, Henry Paulson disse que não queria mais ser chamado de "Sr. Resgate" (Mr. Bailout, em inglês). Uma negociação para o Korean Development Bank investir capital no Lehman fracassou. As tentativas de venda para o Bank of America e para o inglês Barclays tampouco deram certo. Como resultado, o Lehman entrou com um pedido de concordata em 15 de setembro, agravando ainda mais a crise, que passou a ter uma dimensão verdadeiramente global, segundo Blinder.

O presidente do Fed, Ben Bernanke, diria mais de uma vez que não havia uma saída legal para ajudar o Lehman, uma vez que o banco de investimento não teria garantias suficientes para obter um empréstimo do banco central americano, tese vista com ceticismo por muitos analistas. "Eles tomaram várias medidas dúbias do ponto de vista de autoridade legal o ano inteiro. Quem os processaria?", perguntou, na época, o codiretor do Centro de Pesquisa Econômica e de Políticas, Dean Baker.

"Virtualmente, toda a discussão sobre a crise financeira divide a história em duas épocas: 'antes do Lehman' e 'depois do Lehman'", diz Blinder

Classificada como um "erro horrendo" pela então ministra de Finanças da França, Christine Lagarde, hoje diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), a decisão de não resgatar o Lehman logo se mostrou catastrófica. Em 16 de setembro, o Fed, que não salvara o Lehman na véspera, injetou US$ 85 bilhões na AIG, a maior seguradora dos EUA, assumindo uma companhia que não estava sob a sua regulação. Mais antigo fundo de curto prazo ("money market") do país, o Primary Reserve Fund, que havia comprado mais de US$ 700 milhões em dívidas de curto prazo do Lehman, suspendeu os saques naquele dia.

Nos dias e semanas seguintes, o caos tomou conta do mercado financeiro e da economia. Com um acesso cada vez mais difícil a fontes de financiamento, os bancos passaram a reduzir linhas de crédito e a exigir mais garantias. Houve uma corrida aos fundos de curto prazo e um congelamento do mercado de "commercial papers", instrumento usado por muitas empresas para financiar necessidades de curto prazo, como ressalta o professor Laurence Ball, da Universidade Johns Hopkins. Os mercados de ações despencaram, o crédito teve uma contração violenta, levando consumidores e empresas a parar de gastar e investir, derrubando a atividade econômica. Entre agosto e dezembro de 2008, quase 2,5 milhões de empregos foram destruídos nos EUA. Nas palavras de Blinder, "a seca abrupta de crédito, tanto por parte de bancos como pelo chamado sistema bancário paralelo, em combinação com a maciça destruição de riqueza em forma de imóveis, ações e títulos, produziu o que poderia ser esperado: menos crédito, menos consumo e uma recessão violenta".

Em seu livro, Blinder conta que o Lehman estava abarrotado de títulos relacionados a hipotecas, além de ter até mesmo prédios de escritórios e shopping centers. Depois da venda do Bear Stearns para o J.P. Morgan em março, com a ajuda do Fed, o banco entrou na mira dos investidores e passou a buscar capital. Em junho, conseguiu levantar US$ 15 bilhões em ações preferenciais e dívidas de longo prazo, mas não era o suficiente. Segundo Blinder, a liquidez da instituição ainda dependia de empréstimos de curto prazo em que papéis lastreados em hipotecas eram dados como garantia "A mesma estratégia que tinha afundado o Bear Stearns", nota Blinder, professor da Universidade de Princeton.

A falta de regulação e supervisão teve um peso fundamental na crise. "Em 2006 e 2007, todos os grandes bancos de investimento tinham se tornado hedge funds disfarçados", como resume o jornalista da "The New Yorker" John Cassidy, no livro "How the Markets Fail". Aproveitando-se da bolha de crédito, levantavam enormes quantidades de dinheiro no curto prazo, usando para financiar investimentos de longo prazo, como títulos hipotecários e derivativos de vários tipos, diz Cassidy. "O Bear Stearns e o Lehman tinham alavancagem superior a 30 por um. Com isso, uma queda de meros 4% no valor dos ativos da empresa poderia fazer evaporar a base de capital inteira." Houve também um grande crescimento de operações fora dos balanços das instituições financeiras - instrumentos como os chamados "conduits" acabaram por acumular grandes estoques de títulos lastreados por hipotecas.

Em entrevista a Cassidy, Bernanke admitiu ter errado em sua avaliação de que a crise do subprime seria limitada. "A relação causal entre o problema imobiliário e o sistema financeiro mais amplo era muito complexa e difícil de prever", afirmou o presidente do Fed. O total de dívidas hipotecárias nos EUA chegava a US$ 14 trilhões, com o segmento de alto risco respondendo por US$ 2 trilhões, uma fração não muito significativa. O potencial de dano, contudo, foi muito maior do que sugeriam as avaliações do Fed.

 
Se pecou por não ver o potencial de estragos da crise das hipotecas, Bernanke conseguiu evitar que nova Depressão se instalasse nos EUA

 

"As falências ou quase falências de instituições veneráveis como Bear Stearns, Lehman Brothers, Merrill Lynch, Wachovia, Citigroup, Bank of America e outras podem ser ligadas, direta ou indiretamente, a concentrações excessivas de riscos relacionados a hipotecas", escreveu Blinder, que ressalta como a crise mudou a face do sistema financeiro americano, ao analisar o que ocorreu com as 14 principais instituições financeiras do país entre 2007 e 2009. Dos cinco maiores bancos de investimento, o Lehman Brothers quebrou, o Bear Stearns foi comprado pelo J.P. Morgan e o Merrill Lynch foi absorvido pelo Bank of America. Goldman Sachs e o Morgan Stanley, que enfrentaram uma corrida bancária logo depois da quebra do Lehman, foram convertidos em holdings bancárias, o que lhes garantiu acesso a recursos do Fed, ao mesmo tempo em que ficaram submetidos a uma supervisão e a uma regulação mais rigorosas.

A gigante de seguros AIG, por sua vez, foi resgatada pelo Fed, enquanto as agências de financiamento imobiliário Fannie Mae e Freddie Mac foram encampadas pelo governo. O Washington Mutual foi parar nas mãos do J.P. Morgan, e o Wells Fargo comprou o Wachovia. Para completar, o Citigroup foi resgatado, com o Tesouro ficando com uma fatia de 40% do capital do banco.

Depois da quebra do Lehman, o Tesouro e o Fed adotaram medidas mais drásticas para enfrentar a crise no sistema financeiro e evitar o colapso da economia. O governo pediu ao Congresso a aprovação de um programa de US$ 700 bilhões para compra de ativos tóxicos, cujos recursos também foram usados para injetar capital nos bancos, ainda que não fosse o seu propósito inicial. Apesar de muito criticado, o chamado Troubled Asset Relief Program (Tarp) foi muito bem-sucedido, na visão de Blinder. O relatório mais recente do Tesouro americano, de agosto, diz que dos US$ 421 bilhões de recursos do Tarp efetivamente desembolsados mais de 95% já foram recuperados.

Se pecou por não ver o potencial de estragos da crise das hipotecas de alto risco e por não resgatar o Lehman Brothers, Bernanke conseguiu evitar que uma nova Depressão se instalasse nos EUA. Estudioso da crise dos anos 1930, ele fez o possível para repetir o erro cometido pelos dirigentes do Fed naquela época, que permitiram uma contração violenta da oferta de dinheiro na economia, levando a uma recessão monstruosa, marcada por queda acentuada do PIB e a uma deflação prolongada. Em dezembro de 2008, os juros foram reduzidos para perto de zero, e aí permanecem desde então. No momento, o Fed promove a terceira rodada de compras de ativos (o chamado afrouxamento quantitativo) para manter baixas as taxas de longo prazo. Com essa política de aquisição de títulos do Tesouro e de papéis lastreados em hipotecas, o balanço do Fed hoje supera US$ 3,6 trilhões.

Pesquisador sênior do Peterson Institute of International Economics, Edwin Truman diz que a política monetária tem tido um papel bastante positivo. "Ela não foi capaz de mudar tudo, mas iniciou e sustentou a recuperação da atividade econômica", observa Truman, que passou pelo Fed e pelo Tesouro. Para complicar a tarefa do Fed, a política fiscal tem sido contracionista, lembra ele. Em 2009, foi aprovado o pacote de estímulo fiscal de US$ 787 bilhões, mas as escaramuças entre republicanos e democratas sobre a condução das contas públicas nos últimos anos têm levado a uma redução significativa do déficit público, com corte de gastos e aumento de impostos.

 
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Funcionária do Lehman no dia do anúncio da falência: decisão do governo americano de não resgatar a instituição financeira logo se mostrou catastrófica

 

A recuperação da economia americana no pós-Lehman tem sido decepcionante, como fica evidente no desempenho do mercado de trabalho. "Há ainda milhões de pessoas sem emprego, sem casa e que tiveram de largar a faculdade, porque não podem pagar os cursos", afirma Ball, da Johns Hopkins. Em janeiro de 2008, os EUA tinham um pouco mais de 138 milhões de empregos, segundo estatísticas que excluem o setor agropecuário. Em fevereiro de 2010, o número bateu em 129,3 milhões, no fundo do poço pós-crise. A partir de então, o emprego tem crescido, mas em julho deste ano os postos de trabalho somavam 136 milhões - ou seja, 2 milhões a menos que no começo de 2008.

Nas contas de Gary Burtless, do centro de estudos Brookings Institution, faltam entre 7 milhões e 7,5 milhões de vagas para o país voltar ao pleno emprego, considerando nessa conta também a população que entrou no mercado de trabalho desde o começo da recessão. A taxa de desemprego, hoje, está na casa de 7,5%, um número ainda alto, que caiu da casa dos dois dígitos atingida em outubro de 2009 em parte porque muitos americanos deixaram de procurar emprego.

Para Truman, a recuperação da economia americana é frágil porque retomadas que se seguem a recessões associadas a crises financeiras são de fato mais fracas. Os consumidores, por exemplo, ficaram muito endividados e relutavam em assumir novas dívidas. Com isso, o aumento do emprego é inevitavelmente mais lento.

Ball vê outro problema a retardar a recuperação - os juros básicos próximos de zero, o que impede o Fed de colocar a taxa real (descontada a inflação) no nível necessário para acelerar a retomada. Em estudo apresentado em agosto na conferência de Jackson Hole, em Wyoming, promovida pelo Fed de Kansas City, Robert Hall, da Universidade de Stanford, observou que, com os juros básicos em torno de 0,1% e uma inflação em 12 meses na casa de 1,8%, a taxa real está negativa em 1,7%.

"Isso ainda é bastante acima do nível de aproximadamente -4% que faria que a demanda se igualasse aos níveis normais da oferta", escreveu ele. Em resumo, segundo Hall, a taxa real teria que ser bem mais negativa para eliminar a ociosidade de recursos na economia. Com os juros nominais próximos de zero, há limitações para a política monetária, o que leva o Fed e outros bancos centrais a usar medidas não convencionais, como as compras de títulos do Tesouro e papéis lastreados em hipotecas.

 

 

Uma das consequências da política monetária ultraexpansionista adotada pelos BCs dos países desenvolvidos foi o forte aumento da liquidez internacional nos últimos anos. Em Jackson Hole, Lagarde disse que desde 2008 os fluxos líquidos para países emergentes atingiram US$ 1,1 trilhão, muito acima dos US$ 470 bilhões que seriam esperados se não houvesse a adoção dessas medidas pelo Fed e outros bancos centrais. Esse fluxo provocou forte valorização das moedas emergentes e de ativos de países emergentes.

Nos últimos meses, entretanto, a tendência se inverteu, com a perspectiva de que o Fed poderá começar a reduzir o ritmo mensal das compras de ativos, hoje em US$ 85 bilhões por mês. O real e outras moedas de países em desenvolvimento sofreram desvalorizações significativas, num sinal claro de que mesmo pequenas mudanças na política monetária com que o mundo se habituou depois da quebra do Lehman Brothers deverão ter efeitos não desprezíveis. Os juros básicos, porém, ainda devem ficar próximos de zero por bastante tempo.

A situação do sistema financeiro americano, por sua vez, é hoje bem mais saudável do que na Europa, depois das injeções de capital com recursos do Tarp e dos testes de estresse promovidos pelo Fed. "Isso não quer dizer, porém, que o que foi feito é suficiente", pondera Truman. O volume de empréstimos realizados pelos bancos, por exemplo, ainda é fraco.

Para Ball, o ideal seria que a legislação exigisse requerimentos de capital mais elevados para os bancos, para reduzir os riscos. Ele também vê com desconforto o tamanho gigantesco das instituições. Com isso, o problema dos bancos "grandes demais para quebrar" continua não resolvido.

De acordo com Ball, os esforços para aumentar o rigor da regulação do sistema financeiro, com a aprovação da lei Dodd-Frank, ainda são insuficientes. Parte da legislação, por exemplo, não entrou em vigor, como a chamada regra de Volcker (em referência ao ex-presidente do Fed Paul Volcker), que proíbe os bancos de fazer operações especulativas com o seu capital e ter fundos de hedge e de curto prazo. Por essa visão, o poder de Wall Street, se não é tão forte como antes do colapso do Lehman, permanece grande o suficiente para impedir a aprovação e aplicação de leis mais rigorosas.

 

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