Uma Terapia para os planos
19/10/2018
Há cerca de dois anos, o economista Leandro Fonseca começou a ter sintomas típicos de uma sinusite. A cabeça doía, a sensação era a de uma gripe mal curada. Decidiu procurar um médico, que não teve dúvidas após examiná-lo: "Você está com sinusite". Apesar da segurança no diagnóstico, solicitou um exame de tomografia computadorizada. "Mas precisa mesmo? O senhor já não sabe o que tenho?" "Sim, eu sei, mas quero ver a extensão." Fonseca não se convenceu. Recusou a ideia da tomografia e, demonstrando conhecimento no assunto, indagou: "O senhor pode me passar um pedido de raio x? Esse é o protocolo, não?".

Poucos questionariam o médico que pede um exame mais sofisticado, aparentemente preocupado com o bem-estar do paciente. Mas o episódio ocorreu com quem trata do assunto diariamente. Fonseca é presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula os planos de saúde do país. No dia que teve os sintomas de sinusite, ele conseguiu deixar o consultório com um pedido de radiografia, como recomenda a conduta de um especialista nesse caso. A maioria das pessoas, porém, que não entende de protocolos médicos, sequer levantaria dúvidas.

O Valor reuniu cinco especialistas para um debate sobre os problemas da saúde complementar no Brasil: Paulo Chapchap (diretor-geral do Hospital Sírio-Libanês), José Cechin (diretor-executivo da Federação Nacional de Saúde Suplementar - Fenasaúde), Maurício Ceschin (especialista em administração hospitalar), Márcia Agosti (responsável pela gestão de saúde da GE) e o presidente da ANS, Leandro Fonseca. Todos admitem a necessidade de uma drástica e urgente mudança no modelo da saúde suplementar no país.

O setor enfrenta problemas de toda ordem. A fragmentação no atendimento e nos procedimentos induz a excessos, desperdícios e fraudes. Como se fosse numa indústria, o modelo de remuneração incentiva a produção e o consumo de procedimentos, sejam exames ou mesmo cirurgias. Além disso, as grandes operadoras deixaram de vender planos individuais porque o reajuste é controlado pela ANS, a agência reguladora do setor. O cliente mais cobiçado são as empresas, com as quais as operadoras negociam diretamente.

Os valores, no entanto, disparam por causa de deficiências no sistema não tratadas. Em 2017, os planos empresariais aumentaram 17,91%. No mesmo período, a inflação medida pelo IPCA foi de 2,95%. Nas empresas que oferecem o benefício, os planos de saúde representam a segunda maior despesa com pessoal, perdendo apenas para salários. Se no passado a inflação escondia essa escalada de custos, a crise econômica escancarou a gravidade da situação.
A saúde suplementar conta com 47,3 milhões de usuários, o que equivale a pouco mais de 22% da população brasileira. O número já foi maior. No entanto, com a crise, nos últimos quatro anos, mais de 3 milhões de pessoas ficaram sem convênio. A maioria pela perda de emprego. Hoje, dois terços dos planos são bancados por empresas, e a receita anual do setor beira R$ 180 bilhões.

O aumento dos custos levou as empresas a aprofundar o conhecimento em saúde para assumir funções antes delegadas apenas às operadoras. O movimento levou à criação de grupos de discussão. E executivos de alto escalão, incluindo presidentes das companhias, passaram a se interessar por um assunto que há algum tempo era tratado apenas pela área de recursos humanos.

Médico de família
No debate organizado pelo Valor, as internações aparecem entre os principais vilões do aumento dos custos. Não só porque representam metade das despesas das operadoras de planos de saúde, mas, também, porque registraram os maiores percentuais de aumentos de preços. Dados da Fenasaúde indicam que, entre 2011 e 2017, o custo médio com internação subiu 80%, quase o dobro da inflação.

Na defesa dos hospitais, Chapchap, do Sírio-Libanês, cita o envelhecimento da população. "Há uma enorme diferença entre fazer uma cirurgia de vesícula ou de fígado em um indivíduo de 45 anos saudável e em um de 85 com uma série de complicações", afirma.

Novas tecnologias também tornaram os procedimentos mais caros. "A expectativa de vida, no mundo e no Brasil, avançou muito nos últimos anos em decorrência do uso de mais tecnologia na saúde", diz. Especialista em transplante de fígado, Chapchap reconhece, porém, que há indicações de procedimentos desnecessários, como exames e internações. "Não importa que eu seja o melhor cirurgião do mundo, execute o trabalho sem complicações, sem desperdícios de materiais e o paciente saia bem se o procedimento for desnecessário", afirma.

A melhor forma de lidar com a questão, concordam os especialistas, seria mudar o modelo de consulta inicial. Em vez de o paciente tentar "adivinhar" qual especialidade vai aliviar sua dor, ele passaria por um médico de atenção primária. Ou, como muitos chamam, um médico de família. Esse clínico geral é capaz de encaminhá-lo ao especialista mais indicado. Ou, então, ele próprio prescreverá o tratamento. Esse tipo de triagem tem se mostrado eficaz em países onde o serviço público de saúde transformou-se em referência mundial. É o caso do Reino Unido.

Há quatro anos, o Sírio-Libanês implantou esse modelo no atendimento dos próprios funcionários e recentemente passou a oferecer o serviço a empresas, como o banco Santander, que disponham de estrutura adequada para oferecer um médico de atenção primária em ambulatório dentro das suas próprias instalações.
A seguradora SulAmerica oferece pediatras que vão até a casa do usuário. Segundo dados da Mercer Marsh, consultoria especializada em saúde, além de mais eficiente, a iniciativa traz economia. Em média, o custo da SulAmerica com o atendimento de uma criança em pronto-socorro não sai por menos de R$ 700. Já o serviço em domicílio fica em torno de R$ 200. A ideia, agora, é estender esse atendimento a idosos, que poderiam receber o geriatra em casa.

Se a "porta de entrada" passar a ser a consulta em um generalista, haverá necessidade de mais médicos com esse perfil. Os especialistas concordam que o clínico geral está quase em extinção. A especialização em problemas de alta complexidade passou a ser profissionalmente mais atrativa.

"Quando você cria distorções no sistema, como um modelo de remuneração que incentiva o consumo e uso de tecnologia, toda especialidade que tem pouco uso de tecnologia tem menos valia. É por isso que sumiram leitos de pediatria, de ginecologia e obstetrícia. É por isso que os clínicos gerais não se formam mais. São mal remunerados porque não têm valores agregados", diz Ceschin. Para ele, optar pelos generalistas significa "voltar a fazer a medicina como deveria ser".

A valorização das especializações, em detrimento à triagem inicial, leva o usuário a perder-se no sistema, segundo os debatedores. Para Fonseca, da ANS, o modelo de pagamento por procedimento faz com que "cada um olhe um pedacinho do paciente". Segundo ele, a ANS tem procurado incentivar a gestão de saúde para que a operadora não seja uma mera intermediária. "Hoje, de modo geral, a operadora pega o dinheiro da mensalidade, faz a gestão do risco e paga o prestador", afirma.

Abusos e desperdício

Quem já não passou pela experiência ou conhece alguém que alguma vez ficou internado além do tempo aparentemente necessário? Abusos existem, concordam os participantes da mesa-redonda. Mas não é fácil apontar culpados. O consumidor foi diversas vezes citado, ao longo do debate, como suscetível a não questionar procedimentos por ter um plano de saúde que lhe dá o direito ao melhor atendimento. Seu desinteresse pelo quanto a operadora vai gastar com sua saúde o coloca na berlinda.

O assunto é delicado e provoca longas discussões. Chachap insiste na necessidade da atenção primária. "Vou dizer como médico: é muito difícil coibir isso - excesso de procedimentos e de uso de materiais - depois que o paciente chega à emergência. Se você tem uma grande dor de cabeça com algum efeito físico - acontece até na enxaqueca - e vai até um consultório, o profissional vai medicar, esperar meia hora e ver se aquilo resolve. Mas se você vai a uma unidade de emergência, ai do meu médico se ele não fizer uma ressonância. Porque aquele é o último lugar aonde o indivíduo foi. Não tem outra oportunidade. Se ele sair de lá e tiver um AVC, é indesculpável. Então, a porta de entrada tem que mudar", diz.

Ceschin aponta as falhas do setor. "Nós chegamos aqui por uma razão muito simples: induzimos o usuário a um tipo de comportamento, ao longo dos últimos 30 anos da saúde suplementar, atrelando qualidade a tecnologia. Tudo que era anúncio de televisão de operadora mostrava um helicóptero, um tubo, um sujeito subindo no helicóptero. Dissociamos a relação entre médico e paciente e focamos em tecnologia. Isso é culpa do setor. O que acontece, depois de 30 anos? O sujeito que, quando nós nos formamos, ia ao consultório perguntar o que achávamos que ele tinha, hoje chega falando: 'Eu vim aqui fazer uns exames'. O que o médico acha é quase irrelevante". Chapchap diz que é comum ouvir pacientes dizerem: "Pode fazer o que for necessário, doutor, porque meu plano cobre".

Mas será o usuário, então, o maior responsável? Ninguém discorda que o paciente não faz exames se os médicos não pedirem. Márcia Agosti, que comanda a área de gestão de saúde da GE, diz que, pela falta de iniciativas, as empresas que pagam planos de saúde estão assumindo a função. "Não temos uma distribuição de conhecimento sobre saúde diplomática o suficiente, democrática o suficiente para que uma pessoa diga ao médico: 'Não, eu acho que não devo fazer a tomografia porque, afinal de contas, o artigo tal...'. O que restou para nós, fontes pagadoras? Estamos fazendo esse trabalho. Ligamos para toda a rede de médicos e hospitais para negociar", afirma a executiva, em referência ao programa da GE.


Segundo ela, a empresa entra em contato com os maiores prestadores de serviço de cada uma das sete operadoras de planos de saúde que atendem a empresa e monta um grupo de médicos parceiros, que concordaram em alinhar preços.

"Como nosso plano é de pós-pagamento, consigo negociar", afirma ela. "É importante para quem paga a conta que alguém o ajude. Se a operadora entende que não é o papel dela conversar com o médico ou com o hospital."

Márcia sugere valorizar o médico que se compromete com as pessoas. "Não são todos, mas eles existem, sim. Quem vai fazer esse papel? Todos temos que fazer. Agora, atribuir ao usuário a responsabilidade de educar o médico? Para mim, é, no mínimo, covarde. Ele não tem como questionar. Por isso, ele diz: 'Não gostei daquele médico, pediu exames demais e eu tenho coparticipação'. Ele, então, procura outro, outro... No fim, quem paga a conta?"

Remuneração e coparticipação

A polêmica traz à tona o modelo de remuneração. Os debatedores dizem não ter dúvidas de que o "fee for service", ou pagamento por utilização, é inadequado para alcançar uma boa gestão de saúde. Chapchap afirma que existe muita dificuldade para sair desse modelo. Tanto que, nos Estados Unidos, segundo ele, em torno de 70% dos serviços de saúde ainda são pagos dessa forma. Ele sugere que o Brasil faça uma mudança gradual.

Outro ponto polêmico é a coparticipação, modalidade muito usada nos planos de saúde, em que o consumidor, além da mensalidade que ele ou o empregador pagam, tem que arcar com uma parte do valor da consulta ou exame, por exemplo. A coparticipação surgiu para inibir o uso excessivo do plano e, em princípio, seria cobrada apenas para procedimentos de baixa complexidade.


Recentemente, no entanto, para reduzir as queixas contra os aumentos das mensalidades, algumas operadoras começaram a incluir a coparticipação em procedimentos mais complexos e, portanto, mais caros. Hoje não há limite do percentual que cabe ao paciente arcar. Em meados do ano, a ANS criou uma norma limitando a coparticipação em 40% e isentando da cobrança em torno de 250 procedimentos, além de internação e atendimento em pronto-socorro.

A medida provocou muitas divergências de opiniões entre operadoras, usuários e órgãos de defesa do consumidor. Há pouco tempo, a ANS abriu o debate, já abordado até em audiência pública. Os resultados da audiência e as novas regras de coparticipação ainda não foram divulgados.

Para Fonseca, o objetivo da coparticipação é incluir o usuário na discussão. Para Ceschin, essa ferramenta está longe de ser a solução do problema. "Acho que tem de haver a educação do usuário, da mesma forma que tem de haver a educação do médico. Diretrizes clínicas são uma forma de caminhar nesse sentido, e percebemos que isso tem sido utilizando cada vez mais. Com os prestadores há uma série de atitudes a tomar. Com operadoras, mais um tanto. Com a indústria, outro tanto", afirma.

Planos individuais

Diferentemente dos convênios empresariais, negociados diretamente com as operadoras, no plano individual os aumentos são fixados pela ANS. Isso leva ao desinteresse das operadoras em oferecer esse tipo de produto, cujo reajuste definido pela agência reguladora para este ano é de até 10%. A previsão de aumento dos empresariais é de 19%.

Cechin, da Fenasaúde, lembra que há mais de dez anos várias operadoras de grande porte pararam de vender o convênio médico para pessoa física. "Tomo isso como um sinal de que algo está errado na regulamentação", diz. Para ele, apesar de a regra tentar proteger o consumidor, o problema é que agora ele não encontra esse tipo de plano porque não há "um mínimo de segurança" para a operadora colocá-lo no mercado". Ele defende reajustes periódicos, além do que é definido anualmente.


"Uma pessoa compra um plano e inclui o filho recém-nascido. Essa criança tem o direito a permanecer no plano enquanto ela existir. Ou seja, um horizonte de 80, 90 anos. Vocês, que são médicos, dizem que 90% da tecnologia que se pratica hoje não existia há 15 anos; imaginem daqui a 90", destaca o representante das operadoras.
Fonseca reage: "Discordamos da postura do mercado de querer liberar o reajuste de plano individual. Acho necessário algum grau de proteção do consumidor. Mas podemos ter, sim, um aprimoramento regulatório nesse sentido, para diminuir um pouco a insegurança em relação ao reajuste".

O presidente da ANS defende, ainda, a parte da regulamentação que estabelece a impossibilidade de rescisão do contrato de forma unilateral pela operadora em planos individuais exceto em caso de inadimplência. "Imaginem se pudesse cancelar? Você compra um plano e a operadora cancela quando começa a usar demais?", questiona Fonseca. Segundo ele, a ANS calcula os reajustes com base em informações de mercado.

Para Ceschin, as saídas não estão necessariamente só na regulamentação, mas no desenvolvimento de produtos alternativos. Márcia, da GE, diz que enquanto o Estado define que a população dos planos individuais tem que ser protegida, cabe ao resto da cadeia reorganizar o serviço. "Temos que desenvolver esse exercício de transformação porque a regulação não pode ter o papel de 'para porque você está abusando', mas sim de 'para porque não está funcionando'. Temos dados suficientes com transparência, que as próprias operadoras passam para a ANS. Eu, como fonte pagadora, quero ter acesso. Porque eu quero saber o que realmente eu estou pagando."
O tema é complexo, com muitos desafios pela frente. "Eu achava que a Previdência era complexa, mas a saúde é mil vezes mais. Nós vimos aqui", diz Cechin, ao fim do debate. A comparação é fácil para ele, que foi ministro da Previdência no governo de Fernando Henrique Cardoso. "Uma coisa é você dizer para o indivíduo: 'Olha, vivemos mais', o que é bom, mas, por causa disso, o gasto com a Previdência sobe muito, e as contribuições não bastam. Temos, portanto, que adiar a data da aposentadoria'. Outra coisa é dizer que o problema está na fraude, está no desperdício."

Para Ceschin, uma maneira eficiente de mudar o modelo de financiamento do setor é "sair do mutualismo como princípio e começar a fazer capitalização individual". Como acontece na previdência privada. Essa seria uma forma, afirma, de a pessoa se preparar para financiar a saúde no período que tem baixa renda e maior incidência de doenças - ou seja, quando fica idosa. "Porque hoje o indivíduo é expulso do sistema pelo preço quando ele fica velho", afirma.

Para os especialistas, a estrutura da saúde suplementar exige mudanças de cultura e de comportamento. A começar pela equipe médica. Chapchap conta sobre um teste com dez médicos do hospital que dirige. Por meio de uma ferramenta usada mundialmente, foi medida a eficiência médica no procedimento mais realizado no hospital: colecistectomia, que consiste na retirada de vesícula por causa de cálculos. Nessa cirurgia são usados seis clipes.

Os melhores resultados foram obtidos por quem optou pelo procedimento com clipador manual, que custa R$ 300. O automático, cuja única vantagem é o insignificante ganho de tempo de 30 segundos, custa R$ 3,5 mil. Ao mostrar as comparações para a equipe um dos cirurgiões questionou: "Mas o hospital não ganha mais dinheiro quando usa o mais caro?" Chapchap respondeu: "Ganha hoje, mas, no futuro, ficará insustentável".
Fonte: Valor




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