“Imagina ter um funcionário de 30 anos, com uniforme da empresa, postando nas redes sociais que foi vacinado, podendo ir às festas, e do outro lado, um senhor idoso, da comunidade, na UTI, sendo intubado porque não conseguiu a vacina? É indefensável. Há uma destruição de imagem da empresa. Até por egoísmo, se não for por ética, se o empresário quer preservar o valor da marca, não pode fazer isso. Essa ação não tem justificativa.” A opinião é do médico Paulo Chapchap, presidente do Hospital Sírio-Libanês, sobre o interesse de empresas em comprar vacinas da covid-19 para imunizar seus funcionários.
O hospital divulgou, na sexta-feira, um parecer do seu comitê de bioética se posicionando contra a aquisição de vacinas pelo setor privado porque a iniciativa fere os princípios fundamentais da equidade, da integralidade, da universalidade e da justiça distributiva.
Num dos trechos do documento, o Sírio-Libanês destaca que, num cenários de escassez e pandemia, a criação ou fomento de um mercado de vendas de vacina para a iniciativa privada altera tanto o preço quanto a disponibilidade de acesso à vacina. No Brasil, a Associação Brasileira de Clínicas de Vacina (ABCVAC) e a importadora Precisa estão comercializando o imunizante da farmacêutica indiana Bharat Biotech, que ainda está na fase 3 de pesquisas clínicas, por R$ 800.
Chapchap defende que as empresas façam a doação de 100% das vacinas adquirida para a rede pública de saúde, caso consigam o imunizante. As grandes farmacêuticas que já têm suas vacinas aprovadas só estão comercializando para governos. Na visão do presidente do Sírio-Libanês, o lote de 5 milhões de doses da Bharat Biotech, que está sendo negociado por clínicas privadas, também deveria ser doado ao programa de imunização do país.
“O benefício da vacinação é obtido através de estratégia de saúde pública, não como estratégia de saúde individual. Isto significa que é o efeito decorrente da imunidade de rebanho conferida pela vacinação da população que leva à redução mais impactante da morbi-mortalidade de uma doença. Mais ainda, quanto maior for o porcentual de imunidade da população de maior risco, maior será o benefício da vacinação”, afirma o parecer do comitê de ética do hospital.
Chapchap disse ainda desconhecer a existência do lote de 33 milhões de doses da AstraZeneca, que estaria sendo negociado por grupos privados. Ele contou que questionou vários empresários interessados em adquirir as vacinas sobre a procedência desse lote do imunizante e não obteve resposta. “Acho que é fake news.” A farmacêutica nega que esteja em negociação com o setor privado.
O médico disse estranhar a existência dessa quantidade de doses disponíveis para o setor privado num momento de tamanha escassez da vacina, com a União Europeia ameaçando proibir a AstraZeneca de exportar doses caso ela não cumpra o cronograma de entregas nos países europeus.
Para Chapchap, os laboratórios estão sendo responsáveis em só vender para governos que, por sua vez, coordenam as campanhas de imunização dando prioridade a quem mais precisa. “Equidade é um conceito que vai além de igualdade. Acredito que já está se formando uma consciência de que nós só vamos sair disso de mãos dadas, não no conceito de salve-se quem puder.”
No documento, o hospital também criticou as ações do governo no plano de imunização para combater a pandemia. “A falta de confiança de diversos setores privados no protagonismo do poder público para agir de forma eficaz e oportuna no acesso e distribuição das vacinas durante a pandemia cria, junto a uma sensação de insegurança, um risco generalizado de ações individualistas em detrimento de ações cooperativas que busquem prioritariamente o bem comum.”