À Mesa com o Valor - Nísia Trindade: Vacina não é bala mágica, e máscara e distanciamento são necessários, diz presidente da Fiocruz
09/04/2021

Nísia Trindade aparece com um prato de comida na mão, tira a máscara do rosto e a pendura no braço da cadeira à frente do computador. O assento não é de restaurante - pudera, estão todos fechados. Nem é leve, mesmo que o design o seja. Tampouco comum, embora a cor preta se assemelhe a tantos espalhados por escritórios da praça. A cadeira é da presidência da Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz, vinculada ao Ministério da Saúde. Primeira mulher a ocupá-la, Trindade foi reeleita com o apoio maciço de seus pares, justamente em um dos maiores desafios dos 120 anos de existência da instituição. 

Na semana do nosso encontro, o Brasil superou a marca das 300 mil vidas perdidas para a covid-19, rondando as 4 mil mortes por dia, marca ultrapassada na terça-feira passada. O sistema de saúde colapsa em praticamente todo o país, profissionais da linha de frente estão exaustos, faltam tubos de oxigênio, medicamentos, leitos e covas. Vans escolares são usadas como carro fúnebre. Cresce o número de vítimas jovens. A alta disseminação do vírus favorece o surgimento de mutações mais contagiosas e letais. Brasileiros são impedidos de entrar em vários países. 

 

É preciso vacinar muito, e rápido, mas a escalada da doença contrasta com a morosidade da imunização. O Brasil aplicou até agora apenas duas vacinas contra a doença. A Coronavac, desenvolvida pela chinesa Sinovac e produzida no Brasil pelo Instituto Butantan, foi desdenhada pelo presidente Jair Bolsonaro, mas responde por cerca de oito de cada dez doses aplicadas. 

O outro imunizante é a Covishield, desenvolvida pela Universidade de Oxford com a farmacêutica AstraZeneca, em parceria com a Fiocruz, principal aposta do governo federal. A proporção entre elas deve mudar, já que o Instituto Butantan deve diminuir o ritmo de produção, para também fabricar a vacina para a gripe, e porque precisa do insumo para a Coronavac. 

 

As produções das duas vacinas no Brasil dependem da importação do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), insumo essencial, trazido da China. O contrato assinado pela Fiocruz com a AstraZeneca no ano passado prevê duas etapas distintas. Na primeira, as vacinas são feitas com insumos importados e envasadas aqui. 

A previsão da Fiocruz é entregar 100,4 milhões de doses até julho. Praticamente 95% dos IFAs de vacinas e medicamentos farmacêuticos produzidos no Brasil vêm de fora. O processo de abertura comercial iniciado no governo Collor (1990-1992) abriu as portas para produtos importados, quebrou várias indústrias do setor e solapou a produção interna. Sem investimentos do governo, a saída mais fácil foi comprar os insumos de fora. A desvantagem de tanta dependência talvez nunca tenha ficado tão evidente como agora. 
 

 
 

A campanha de vacinação vem sofrendo com a escassez de doses, e várias cidades chegaram a suspendê-la brevemente no meio do caminho. Em janeiro, o atraso na entrega de insumos vindos da China deixou as máquinas da Fiocruz paradas e alterou seu cronograma. Como forma de compensar os atrasos, a instituição negociou com a Índia o envio de doses prontas. 

O acordo com a AstraZeneca prevê também a transferência tecnológica para a produção do princípio ativo no Brasil, o que colocaria fim à dependência da importação dos insumos para a vacina. A estimativa é que no segundo semestre a Fiocruz comece a entregar doses que chegarão a mais 110 milhões até o fim do ano. Por enquanto, o Brasil permanece refém das remessas importadas do IFA, nem sempre feitas nos prazos combinados. 

 

Quando conversei com Trindade, no início de uma tarde, a Fiocruz previa entregar 21 milhões de doses em abril. No fim do dia, o número já era outro, 18 milhões. O Ministério da Saúde mantinha a previsão de entrega de 30 milhões de doses em abril. 

“Não posso dizer que foi um erro do ministério, apenas reprodução de expectativas, que só podem ser corrigidas com o início da produção. O processo é industrial, mas, ao mesmo tempo, artesanal”, explica Trindade. Embora pareça simples, diz, a tecnologia é nova e mais complexa do que a de outras vacinas. 

Da chegada da matéria-prima até as doses envasadas são necessários aproximadamente 25 dias. O rendimento a partir do material recebido pode variar um pouco. Além disso, diz, os atrasos na entrega do IFA comprometeram todo o cronograma. “Mas temos insumos garantidos para a produção até meados de maio”, acrescenta, e só então ajeita um punhado da comida no garfo. 

No móvel às suas costas, uma pilha de papéis e um vaso de flor. Na parede, uma gravura feita pelo artista alemão Hans Hornig do Castelo da Fiocruz, símbolo da ciência brasileira. Imaginado por Oswaldo Cruz (1872-1917) para ser a sede da instituição, conta com azulejos portugueses e mosaicos em tapeçaria árabe. A cúpula octogonal é feita de cobre. Com o castelo em obras, Trindade se mudou temporariamente para o espaço criado em homenagem ao médico sanitarista e infectologista Carlos Chagas (1879-1934). A instituição conta com duas fábricas, uma de vacinas e outra de remédios, além de 16 unidades de ensino e pesquisa espalhadas pelo Brasil. 

 

A presidência da Fiocruz é renovada a cada quatro anos. Funcionários da instituição elegem uma lista tríplice por voto direto. A lista é encaminhada ao presidente da República, que tradicionalmente nomeia o mais votado. Às vésperas da última eleição, em dezembro, Mayara Pinheiro, secretária do Ministério da Saúde conhecida como Capitã Cloroquina, gravou um áudio, divulgado pela revista “piauí”. 

Dizia que era necessário interferir para evitar a reeleição de Trindade e impedir a permanência de esquerdistas dentro da instituição “dando a pauta do país, dando as direções”. A secretária foi além. “Eles têm um pênis na porta da Fiocruz, todos os tapetes das portas são a figura do Che Guevara, as salas são figurinhas do Lula Livre, Marielle Vive.” 

A reação da comunidade acadêmica e científica foi forte e imediata. Uma das candidatas à presidência da Fiocruz, Tania Araújo-Jorge, abandonou a disputa para apoiar Trindade. “Incluo meu voto e meu apoio, nesse exato momento, nessa conjuntura e por causa dessa conjuntura. (...) Movimentos negacionistas desqualificam a pesquisa e a inovação, em conluio com forças políticas de ultradireita, no Brasil e no mundo.” 

O almoço, preparado na cozinha do gabinete da presidência, “é bem caseirinho”. Salada de alface, abobrinha, cenoura, ovo cozido, frango, arroz e farofa. Ao lado do prato, uma garrafa de plástico com água, um copo de suco e um pote de álcool em gel. Janelas abertas e ar-condicionado desligado, por dois motivos: “É mais saudável, e o barulho do ar vai me dando uma perturbação”. 

Trindade tem evitado comparecer presencialmente a seus compromissos, algo difícil nos últimos dias. É comum receber visitas de integrantes do Ministério da Saúde, de parlamentares e de prefeitos. Temas tratados? “Vacina, vacina, vacina”, diz, enquanto ajeita o guardanapo amarelo no colo, sobre o vestido preto com bolas rosas, da mesma cor do colar. 

 

Diariamente, a presidente da Fiocruz tem que responder a uma infinidade de questões que afligem a todos: Quando teremos mais doses? Quantas? Chegarão a tempo? Vão atrasar novamente? O governo orientou Estados e municípios a usar todas as vacinas de que já dispõem para a primeira dose, sem guardar para a segunda. Vamos ficar na mão? 

Neste momento, diz Trindade, o objetivo é vacinar a maior quantidade de pessoas possível para salvar vidas e reduzir o impacto da pandemia no sistema de saúde. Portanto, ela avalia ser acertada a decisão de liberar todas as vacinas disponíveis para a primeira dose. A bula do imunizante da AstraZeneca sugere o intervalo de 12 semanas para a segunda picada, tempo suficiente, diz, para recompor estoques. Segundo estudos clínicos recentes, a vacina demonstrou 76% de eficácia após a primeira dose, 82% após a segunda e 100% contra casos graves. 

O temor inicial de que a vacina não fosse recomendada para idosos e, depois, de que aumentaria o risco de trombose foi dissipado após divulgação de resultados de novas pesquisas. Mesmo assim, três países da Europa mantêm o veto do imunizante e a Alemanha restringe seu uso a menores de 60 anos. “São controvérsias científicas válidas, mas não temos dúvida de que estamos diante de uma vacina muito boa, essa é a mensagem mais importante”, pondera Trindade. 

Um impacto coletivo só será atingido quando 70% da população estiver vacinada. A última previsão da Fiocruz previa dois anos e meio para vacinar toda a população brasileira e apenas com a primeira dose. Com a oferta dos imunizantes dos dois laboratórios públicos e com a vinda de novas vacinas compradas pelo governo, como a da americana Pfizer e a da belga Janssen, Trindade acredita que o ritmo da vacinação será acelerado e vamos atingir a meta, embora ainda não seja possível cravar uma data. 

 
 

“Não tenho uma visão pessimista sobre a vacinação”, diz, com voz pausada. “Mas é preciso lembrar que a vacina não é bala mágica. Para romper a circulação do vírus é preciso um número grande de pessoas vacinadas. É necessário o uso de máscara, o distanciamento social. Temos ainda um caminho difícil a percorrer”, arremata, e só então lembra da comida que esfria no prato. 

Enquanto Trindade ajeita um pedaço de frango e legumes no garfo, peço mais detalhes sobre o contrato com a AstraZeneca. O acordo começou a ser discutido em abril do ano passado e foi assinado em setembro, na gestão do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Especialistas apontam cláusulas abusivas, que poderiam prejudicar o Brasil. O cronograma de entrega, seja de insumos, seja de vacinas prontas, é bastante elástico. Há alguma cláusula que nos proteja dos atrasos? 

“De fato, algumas questões parecem fluidas do ponto de vista dos prazos, mas têm a ver com a própria incerteza do processo inicial de produção”, explica. O acordo com a farmacêutica, diz, garante o acesso a um volume expressivo de vacinas, mas também assegura a transferência total da tecnologia para Bio-Manguinhos/Fiocruz. “Compramos não um produto, mas um serviço de inovação do qual ele resulta. Não apenas nós, mas o mundo inteiro assumiu riscos”, diz, antes de abandonar novamente a comida e focar na conversa. Outro ponto importante para a parceria, diz, foi o custo vantajoso se comparado com o de outras vacinas. “Pagamos o IFA na faixa dos US$ 3, mais os custos adicionais, sai por volta de US$ 5 a dose.” 

Alguns empresários defendem a compra de vacinas pelo sistema privado sem a contrapartida de oferecer doses para o Sistema Único de Saúde (SUS). Um grupo ligado ao setor de transportes chegou a pagar R$ 600 pela dose da vacina Pfizer para distribuir a amigos e familiares, como reportou a revista “piauí”, mas a Polícia Federal suspeita de que compraram gato por lebre. O Congresso cogita liberar as compras privadas com a previsão de que poderiam abater o valor gasto do Imposto de Renda, sem a contrapartida de doar doses ao SUS, criando uma espécie de “fura-fila” patrocinado. 

“A vacina, ainda mais em tempos de pandemia, é um bem público, oferecido pelo Programa Nacional de Imunização, através do SUS e com ordem prioritária, tomando cuidado com os mais vulneráveis. Ela não pode ser vista apenas como proteção individual, mas como proteção coletiva. Caso contrário, ninguém estará protegido”, diz Trindade. “Mas quero dizer que também há solidariedade e muitos empresários têm defendido a hierarquia de priorizar os mais vulneráveis.” 

A presidente da Fiocruz é doutora em sociologia, pesquisadora e professora do Programa de História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz. Sua obra é referência para estudiosos de história da ciência e da saúde pública. “A área da saúde é interdisciplinar, embora muitas vezes não seja vista assim”, diz. Para ela, não adianta focar apenas na produção de vacinas e negligenciar estratégias de comunicação. “Pode fazer tudo e a população simplesmente não se vacinar. Quem entra com essa discussão são as ciências sociais.” 

Segundo um estudo sobre confiança em vacinas da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, seria um erro acreditar que basta divulgar informação científica para que as pessoas tomem decisões sensatas. É preciso conquistar a confiança, ainda mais neste momento em que movimentos antivacinas se espalham como vírus. 

Quando ingressou na Fiocruz, Trindade era uma jovem pesquisadora de 29 anos, mãe de André e Márcio. “Hoje, 34 anos depois, sou presidente da Fiocruz e avó do Bento”, escreveu ela, após o último pleito. Seus dois filhos são músicos: o mais velho, André, focado em pesquisa de música de matriz africana; o caçula é da banda de reggae Ponto de Equilíbrio. 

“Temos uma relação muito próxima, compartilhamos visões do mundo”, diz, recostando-se na cadeira pela primeira vez durante a conversa. Tivesse tempo, diz, participaria do Coral da Fiocruz. “Eu os incentivo, mas não tenho talento musical. Gosto de arte e cultura, mas escrever é o mais próximo que chego do mundo artístico.” 

 

Trindade é filha de um advogado e de uma funcionária pública. A mãe morreu jovem após complicações de uma cirurgia. “Eu tinha três anos, convivi pouquíssimo com ela.” Duas pessoas queridas se foram recentemente, vítimas da covid. O professor Luiz Antônio Machado da Silva, seu orientador de mestrado, “uma pessoa muito querida”, e a psicóloga Eliane Seldin, sua terapeuta por 25 anos. “Foi muito, muito duro.” 

Com o prato ainda pela metade, Trindade encerra o serviço e abandona os talheres. Ao entrar na Fiocruz, conta, com as mãos novamente entrelaçadas sobre a mesa, havia dois projetos na Casa de Oswaldo Cruz. Um sobre a memória da assistência médica na Previdência Social, do qual fez parte, e outro dedicado a recuperar a história do episódio conhecido como o Massacre de Manguinhos. 

Na década de 1970, no auge da repressão da ditadura militar, por meio do Ato Institucional nº 5, dez cientistas notáveis da instituição foram cassados, seus laboratórios, fechados, suas pesquisas, interrompidas, e suas equipes, desfeitas. Os pesquisadores não restringiam a função da Fiocruz a produção de soros e vacinas. 

Eles acreditavam que a instituição era um instrumento essencial para o desenvolvimento nacional e defendiam a criação de um Ministério da Ciência e Tecnologia, que só ocorreu em 1985, com a redemocratização do país. O evento está narrado em uma série de livros, como “O Massacre de Manguinhos” (1978, Avenir Editora), assinado por uma das vítimas, o médico e pesquisador Herman Lent (1911-2004). “Sem dúvida, a cassação teve um impacto terrível sobre o desenvolvimento científico brasileiro”, diz. “Com a abertura política, houve um lindo ato de reintegração deles à Fiocruz.” 

Em abril do ano passado, um estudo da Fiocruz realizado em Manaus reafirmou que não há evidências de que o uso da cloroquina faz diferença no tratamento do coronavírus. Os pesquisadores foram atacados nas redes sociais e passaram a andar com segurança após divulgarem os dados. A despeito de toda a evidência científica, o medicamento foi defendido e distribuído pelo governo como “tratamento precoce” para a doença. 

 
 

 

 
Em 2019, o ex-ministro Osmar Terra proibiu a divulgação de uma pesquisa da Fiocruz sobre drogas e cortou verbas. Pergunto à presidente da instituição se ela vê relação entre as perseguições do passado com os eventos recentes. 

“Vivemos um período muito diverso do daquela época. Nossas instituições estão funcionando, é uma comparação difícil de ser feita.” Faz uma pausa, enche o copo de água e prossegue. “Agora, acho um valor fundamental a liberdade de pesquisa e divulgação de dados após análise criteriosa. Há forte relação entre ciência e democracia, e ela só floresce plenamente em um ambiente democrático.” 

A pesquisa sobre drogas continua engavetada? “Estamos trabalhando para que se resolva em breve”, diz. “Temos prezado a liberdade de pesquisa, e acho que é esse o nosso papel.” Trindade se abstém de entrar no confronto que coloca a comunidade científica de um lado e os negacionistas de outro. 

“Querida, agora eu tenho que ir”, avisa, antes de resgatar a máscara pendurada no braço da cadeira, colocá-la no rosto e voar para o próximo compromisso. 

Fonte: Valor




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