A judicialização da saúde suplementar representa um dos fenômenos mais emblemáticos da sobrecarga estrutural do sistema judiciário brasileiro. Segundo levantamento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ), entre janeiro de 2021 e fevereiro de 2025, foram ajuizadas 53.157 ações relacionadas à saúde no estado. Esse volume corresponde a uma média de 35 novas ações por dia útil, evidenciando o caráter sistêmico da litigância em saúde e sua recorrência factual e jurídica.
A análise estatística dessas demandas demonstra que 31% têm como objeto o acesso a tratamentos médico-hospitalares negados, enquanto 12% estão relacionadas ao fornecimento de medicamentos — frequentemente de alto custo ou não incorporados às diretrizes da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Outros percentuais expressivos envolvem pedidos de home care, insumos médicos e acesso à terapia intensiva, indicando um padrão que transcende casos isolados e aponta para disfunções sistêmicas na regulação, contratação e entrega de serviços no setor suplementar de saúde.
Diante desse quadro, a aplicação de inteligência artificial preditiva (IAP) surge como um mecanismo central de enfrentamento do contencioso de massa. Trata-se da utilização de algoritmos estatísticos e modelos de aprendizado de máquina (machine learning) treinados com grandes volumes de dados extraídos de jurisprudência, protocolos administrativos e normativos regulatórios. O objetivo é construir sistemas que possam prever com alto grau de acurácia os possíveis desfechos de um litígio, a partir da identificação de variáveis-chave, como fundamentos da petição, tipo de cobertura pleiteada, perfil do beneficiário, jurisprudência local e decisões anteriores do mesmo juízo ou relator.
Tais modelos têm potencial para revolucionar a gestão jurídica no setor da saúde suplementar. A partir da classificação automatizada de litígios por grau de risco e recorrência, torna-se possível estruturar estratégias de autocomposição padronizadas, aprimorar a tomada de decisão em tempo real e estabelecer filtros técnicos para a formação de teses defensivas com base em clusters jurisprudenciais. Em ambientes empresariais, especialmente no contexto das operadoras de planos de saúde, a IAP viabiliza o mapeamento de litígios evitáveis, o redesenho de fluxos internos de análise contratual e o redirecionamento de recursos para disputas de maior complexidade e impacto econômico-regulatório.
Paralelamente, o Poder Judiciário e os órgãos reguladores vêm ampliando o escopo de projetos estruturantes orientados à desjudicialização. Em novembro de 2024, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) firmou acordo de cooperação técnica com a ANS, prevendo a elaboração de pareceres técnico-científicos para subsidiar decisões judiciais, o incentivo ao uso de métodos alternativos de resolução de conflitos e o monitoramento sistemático das principais causas da litigância no setor. A cooperação, com duração inicial de 36 meses, prevê também a formação de um grupo de trabalho interinstitucional para acompanhamento e avaliação periódica de impacto.
Inserida nesse ecossistema de inovação institucional, a plataforma +Acordo, desenvolvida pelo TJ-RJ em parceria com a PUC-Rio, representa um exemplo relevante — embora não exclusivo — da aplicação de soluções digitais alinhadas às diretrizes da Justiça 4.0. Inicialmente voltada para demandas do Direito do Consumidor, a plataforma passou a incluir operadoras de saúde suplementar, com destaque para a adesão da Unimed Ferj no final de 2024. O sistema permite a submissão de propostas de acordo automatizadas, com cláusulas dinâmicas baseadas em decisões anteriores, jurisprudência dominante e parâmetros objetivos, sendo sua homologação realizada diretamente no processo judicial eletrônico.
A estrutura da plataforma reflete um modelo orientado por dados, onde a IA atua na sugestão parametrizada de termos conciliatórios e na filtragem de litígios elegíveis à autocomposição. Ainda que experimental, a iniciativa alinha-se à tendência de valorização da resolução extrajudicial assistida por tecnologia, especialmente em segmentos marcados por alta incidência de litígios com baixa complexidade técnica ou elevada padronização de causa de pedir.
A aplicação coordenada de inteligência artificial preditiva e plataformas digitais especializadas não apenas favorece a eficiência judicial e a racionalidade administrativa, como também reforça a previsibilidade e a segurança jurídica no setor regulado. Ao permitir a identificação antecipada de litígios com elevado potencial de composição, a IAP atua como elemento de racionalização sistêmica, contribuindo para o redesenho dos limites entre o contratual e o judicializável, com impacto direto sobre a governança regulatória e a sustentabilidade econômico-financeira das operadoras.
Assim, o futuro da resolução de conflitos no setor da saúde suplementar depende cada vez menos da resposta reativa dos tribunais e cada vez mais da inteligência coordenada entre dados, tecnologia e decisão institucional. Trata-se de transitar de um modelo fragmentado e casuístico para uma lógica preventiva, parametrizada e estratégica, em que o litígio não seja a regra, mas a exceção tecnicamente qualificada. A inteligência artificial preditiva, nesse cenário, consolida-se não apenas como ferramenta, mas como infraestrutura analítica essencial à modernização do Direito e à racionalização do acesso à justiça.
*Lívia Linhares é sócia responsável pelo Contencioso e Rachel Quintana Rua Duarte é advogada do Bhering Cabral Advogados.