Lembro-me, como se fosse hoje, de um episódio ocorrido há cerca de uma década. Na época, Martha Oliveira, então diretora da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), relatava a surpresa de um executivo alemão ao ouvir, em uma reunião internacional na Europa, a menção às “glosas” praticadas com tanta frequência por operadoras e planos de saúde no Brasil. O executivo não conseguia compreender o que era uma glosa, como se aplicava e, sobretudo, por que era imposta quando o procedimento já havia sido previamente autorizado. Não foi apenas ele: segundo Martha, o espanto se espalhou entre todos os integrantes da mesa e da plateia.
Mais do que uma “jabuticaba”, a glosa parece uma verdadeira jaca pendurada a seis metros de altura sobre a cabeça dos fornecedores de produtos para a saúde. Uma pesquisa da ABRAIDI constatou que 80% das empresas associadas tiveram sua prestação de contas glosada por operadoras e planos de saúde ao longo do último ano. A glosa ocorre quando o cliente suspende total ou parcialmente o pagamento por equipamentos e materiais utilizados em cirurgias, assim como acontece com os consumidores que têm um reembolso lícito glosado, por exemplo.
O problema se agrava porque, muitas vezes, os motivos da glosa sequer são informados. Quando são, a comunicação carece de transparência e costuma vir acompanhada de justificativas vagas, baseadas em “razões técnicas ou administrativas”. O que se sabe de fato é que o pagamento não será realizado ou sofrerá atrasos significativos. Na mesma pesquisa, apontou-se um prazo médio de pagamento de 139 dias — o equivalente a quatro meses e 19 dias.
Essa prática recorrente cresceu cerca de 20% em relação ao ano anterior, subtraindo ou postergando aproximadamente R$ 30 milhões do caixa das empresas de produtos para a saúde. Trata-se do valor mais alto desde o início da série histórica da ABRAIDI, em 2017.
Os pagamentos glosados atingem toda a gama de procedimentos, tanto cirurgias de urgência e emergência quanto procedimentos eletivos, previamente programados e autorizados pelas operadoras. A proporção de glosas entre ambos os tipos de atendimento foi equivalente. É interessante notar, porém, que essa prática recuou durante os anos da pandemia de Covid-19— provavelmente devido à queda no número de cirurgias eletivas —, mas voltou a crescer gradativamente nos anos seguintes, até atingir o pico em 2024.
As glosas geram incerteza e dificuldades na gestão financeira, comprometem o fluxo de caixa, afetam a sustentabilidade das empresas e, inevitavelmente, desgastam o relacionamento comercial. Fornecedores de produtos para a saúde acabam obrigados a se submeter a condições que os prejudicam, assim como os consumidores, que enfrentam no dia a dia problema semelhante.
Segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o número de ações contra planos de saúde dobrou nos últimos quatro anos, passando de 141 mil novos processos em 2020 para quase 300 mil em 2024.
O consumidor não quer uma jabuticaba que lhe desça torta pela garganta, nem o fornecedor de produtos para a saúde deseja viver sob o risco de uma jaca sobre a cabeça. O que se busca é um diálogo mais transparente com as operadoras, para que juntos possamos construir soluções para um problema tão grave. O Instituto Ética Saúde tem debatido as distorções do setor; no entanto, nessas discussões permanece vazia a cadeira que deveria ser ocupada por representantes dos planos de saúde.
Um dos maiores filósofos da Grécia Antiga, Sócrates, ensinava que “a palavra é o instrumento irresistível da conquista da razão”. Quem foge do diálogo o faz porque sabe que não há nada de racional em suas atitudes, apenas a busca pelo benefício próprio, sem qualquer compromisso com o coletivo.
*Sérgio Madeira é médico e diretor técnico da Associação Brasileira de Importadores e Distribuidores de Produtos para Saúde (ABRAIDI).