A consolidação da cirurgia ambulatorial como um pilar de eficiência, segurança e valor no ecossistema de saúde é um consenso global. No entanto, à medida que avançamos na expansão deste modelo, deparamo-nos com um gargalo crítico que ameaça a sustentabilidade do setor: a escassez de profissionais com o conjunto de habilidades específicas que este ambiente exige.
Este desafio não é meramente quantitativo; é uma lacuna de competência qualitativa, forjada ao longo de décadas por uma “mentalidade hospitalocêntrica” que ainda domina a formação médica e os programas de residência. Para cultivar a próxima geração de cirurgiões, anestesiologistas e enfermeiros, é imperativo reformular fundamentalmente o treinamento em saúde, alinhando-o às realidades clínicas e operacionais das Unidades de Cirurgia Ambulatorial (UCAs).
O paradigma hospitalocêntrico tradicionalmente foca no manejo de casos complexos, longos períodos de internação e uma vasta infraestrutura de suporte. O ambiente de cirurgia ambulatorial, por outro lado, opera sob um modelo de alta performance, rotatividade rápida e recuperação acelerada, sem prejuízo da segurança do paciente.
Isso exige competências que transcendem a habilidade cirúrgica técnica:
Atualmente, a exposição à cirurgia ambulatorial durante a formação médica, de enfermagem e de gestão hospitalar é, muitas vezes, limitada ou suplementar. Programas de residência cirúrgica tendem a priorizar procedimentos de alta complexidade em regime de internação, relegando os casos ambulatoriais, por vezes, a residentes juniores, sem o devido foco nos aspectos gerenciais e de processo que definem o modelo, retroalimentando a “cultura hospitalocêntrica” ainda predominante no Brasil.
Embora cursos de especialização e pós-graduação existam, eles atuam como medidas corretivas para lacunas que não deveriam existir. Para uma mudança sistêmica, os princípios fundamentais da prática ambulatorial devem ser integrados aos currículos centrais de graduação e residência.
Uma reforma curricular eficaz deve incluir módulos dedicados e obrigatórios que reflitam a prática moderna. Um programa de residência cirúrgica ou anestesiológica alinhado ao futuro deveria incluir:
A expansão da cirurgia ambulatorial sem padrões claros de formação e acreditação cria um risco regulatório e assistencial. É neste ponto que as sociedades devem assumir o protagonismo.
A Sociedade Brasileira de Cirurgia Ambulatorial (SOBRACAM) posiciona-se como principal liderança para catalisar essa transformação. Seguindo o exemplo de entidades internacionais, como a International Association for Ambulatory Surgery (IAAS), que há muito defende padrões educacionais específicos, a SOBRACAM tem a responsabilidade de desenvolver e advogar por um padrão nacional de operação e credenciamento para Unidades Cirúrgicas Ambulatoriais e, crucialmente, de certificação para os profissionais que neles atuam.
Além disto a Sociedade tem realizado um papel fundamental no setor público, para a criação e atualização do arcabouço regulatório, que irá permitir maior segurança, padronização e crescimento sustentável da cirurgia ambulatorial no Brasil. A publicação da Política Nacional de Cirurgia Ambulatorial foi um marco importante neste sentido e tem pautado importantes discussões sobre o tema junto ao setor público.
Cultivar a próxima geração de especialistas em cirurgia ambulatorial não é apenas um desafio acadêmico; é um pilar estratégico para a sustentabilidade e a correta expansão deste modelo no Brasil. Endereçar corretamente as barreiras da mentalidade e da formação hospitalocêntrica é o primeiro passo para construir um legado duradouro de qualidade, segurança e eficiência no cuidado cirúrgico.