Em 2026, uma nova etapa na transformação digital da saúde promete se consolidar. A inteligência artificial, que operava majoritariamente como ferramenta de automação, passa a atuar como um agente cognitivo capaz de compreender contexto, aprender com resultados e tomar decisões de forma integrada aos fluxos clínicos e administrativos.
Essa transição, impulsionada pela chamada agentic AI, redefine o papel da tecnologia no cuidado, aproximando a automação da empatia e da inteligência situacional.
Mais do que uma tendência tecnológica, o movimento representa uma mudança estrutural na forma como hospitais, laboratórios e operadoras utilizam dados para gerar valor. A IA deixa de ser apenas suporte operacional e passa a atuar como conectora de sistemas, processos e pessoas — uma aliada estratégica para decisões mais ágeis, seguras e personalizadas.
No entanto, especialistas alertam: a maturidade tecnológica não basta. O avanço dependerá da capacidade do setor de consolidar governança, interoperabilidade e representatividade de dados, pilares que sustentam a confiança e a eficácia no uso da inteligência artificial em saúde.
De assistentes automatizados a sistemas que entendem contexto e tom de voz, a inteligência artificial entra em uma nova fase — mais empática, explicável e integrada aos fluxos clínicos e operacionais. A próxima geração, chamada de agentic AI, ultrapassa o estágio da simples automação. A ferramenta é capaz de interpretar o ambiente, agir com base em dados e conectar informações entre sistemas, pessoas e processos.
Essa inteligência autônoma é capaz de operar em fluxos de trabalho complexos, com tomadas de decisão; acessar e integrar dados de várias fontes (prontuários médicos, históricos de sinistros, e-mails); aprender com os resultados, adaptando seu comportamento com o tempo; e executar ações direcionadas a objetivos — não apenas seguir instruções pré-definidas, mas agir (quando permitido) com autonomia.
A transição representa um salto qualitativo na saúde, segundo Alex Vieira, vice-presidente da Associação Brasileira CIO Saúde (ABCIS) e CIO do Hcor.
“Estamos saindo de uma IA puramente automatizadora para uma IA mais cognitiva, contextual e relacional. Os modelos deixam de ser apenas classificadores de exames, textos ou imagens, e passam a atuar como agentes capazes de entender contexto clínico, administrativo e financeiro ao mesmo tempo. São sistemas que tomam decisões condicionais e interagem com diversos sistemas”, enfatiza.
Essa evolução traz oportunidades e ganhos para a saúde — mas também exige um salto de maturidade: a adoção não basta; o foco está em extrair valor confiável e em embalar essa transformação em governança, segurança e operações clínicas reais.
“O uso de sistemas agênticos na saúde permitirá a integração e a interoperabilidade de dados e o auxílio à decisão clínica, melhorando consideravelmente a atenção à saúde, a prática médica e o prognóstico dos pacientes, principalmente no caso de doenças raras com as quais os médicos têm pouco contato na prática. No entanto, a automação de decisões de saúde ainda não é uma realidade”, avalia Alexandre Chiavegatto Filho, professor livre docente da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.
O especialista destaca que o próximo passo do uso da inteligência artificial no setor de saúde será a diminuição das burocracias.
“Grandes hospitais, por exemplo, já estão testando o uso de algoritmos de IA para preencherem os prontuários eletrônicos a partir da conversa entre médicos e pacientes, com resultados bastante promissores. O que está ainda um pouco longe de ser uma realidade amplamente disseminada no sistema de saúde é o uso de IA para o auxílio à decisão clínica.”
Um dos desafios centrais de risco na adoção de IA em saúde é o fenômeno conhecido como drift algorítmico, ou seja, a degradação da acurácia ou adequação de um modelo de IA conforme o ambiente muda. Isso pode ocorrer com protocolos clínicos, prevalência de doenças, hardware de medição, perfil de pacientes, por exemplo.
“Drift algorítmico é fato, não hipótese. Dados mudam, protocolos mudam, a população muda. Se o modelo não for monitorado, ele envelhece. Uma instituição de saúde precisa tratar o modelo de IA como um ativo vivo, não um projeto fechado. É essencial definir indicadores clínicos e operacionais e estabelecer um comitê de governança de IA. Sem isso, é como protocolo clínico sem revisão periódica — começa certo, mas inevitavelmente sai da rota”, explica Vieira.
Para garantir que modelos de IA permaneçam precisos e confiáveis ao longo do tempo, Chiavegatto acredita que será necessário utilizar uma técnica conhecida como “aprendizado contínuo”, que vem sendo desenvolvida no Laboratório de Big Data e Análise Preditiva (LABDAPS) da Faculdade de Saúde Pública da USP.
O conceito se refere a algoritmos que reaprendem automaticamente com os dados que usam para realizar a predição e permite uma alta adaptabilidade às mudanças, conforme o uso de algoritmos na saúde.
Embora o potencial seja grande, o Brasil ainda vive um estágio intermediário e fragmentado de adoção da inteligência artificial. Vieira pontua que existem ilhas de excelência, mas ainda não um ecossistema integrado em escala nacional.
“Os gargalos mais críticos são a qualidade e estruturação dos dados, a integração entre sistemas, a governança de dados e modelos e a regulação, que ainda está em amadurecimento. A tecnologia está pronta; o que não está pronta é a infraestrutura organizacional e regulatória para escalar com segurança”, avalia o CIO do Hcor.
O avanço da inteligência artificial em instituições como a Mayo Clinic e o National Health Service (NHS) mostra que a maturidade digital na saúde depende menos da tecnologia em si e mais de governança, integração e qualidade dos dados.
Esses sistemas têm evoluído com base em estruturas sólidas de auditoria, interoperabilidade e monitoramento contínuo dos algoritmos — práticas que garantem segurança, explicabilidade e confiança nos resultados clínicos.
“No Brasil, alcançar esse nível de maturidade exige mais do que importar soluções ou replicar modelos estrangeiros. O país precisa investir na representatividade dos dados que alimentam seus algoritmos, considerando a diversidade e as desigualdades regionais que marcam o sistema de saúde. Sem isso, há risco de reproduzir vieses e criar ferramentas que funcionem bem apenas para uma parte da população — justamente a menos vulnerável”, alerta Chiavegatto.
Para Vieira, o que falta não é tecnologia, mas estratégia e coordenação sistêmica. “Falta menos tecnologia e mais continuidade. O que Mayo Clinic, NHS e outros ecossistemas maduros têm é uma visão nacional de dados em saúde e estratégias digitais de longo prazo. Se eu tivesse que escolher uma prioridade número um para o Brasil hoje, seria organizar e qualificar dados em saúde com interoperabilidade real”, destaca.
Na avaliação do executivo, a aceleração da IA no país depende de colaboração estruturada entre hospitais, start-ups e academia. “O Brasil só vai destravar o potencial da IA com jogos de soma positiva, e não com cada instituição tentando reinventar a roda.
CIOs precisam definir problemas reais e abrir dados de forma segura; start-ups devem trazer velocidade e soluções dentro de modelos de coinovação; e a academia deve garantir rigor científico, validação e reprodutibilidade. O caminho é a tríplice hélice da inovação em saúde — hospital, start-up e universidade — operando com governança, ética e interoperabilidade.”
O Hospital Alemão Oswaldo Cruz vive uma fase de consolidação no uso da chamada Agentic AI. Segundo Thiago Cachello, gerente de Tecnologia da Informação, o hospital encontra-se em um estágio intermediário de adoção, com aplicações práticas já incorporadas às rotinas assistenciais e operacionais.
Apesar dos resultados concretos observados pela instituição desde a integração da inteligência artificial, Cachello aponta que a principal barreira ainda é a governança.
“A aplicação da IA em saúde exige políticas claras sobre uso ético, transparência dos modelos, privacidade e definição de responsabilidades, sobretudo em decisões clínicas. O setor ainda caminha para amadurecer esses processos, o que demanda uma estrutura sólida de compliance e segurança da informação”, afirma.
Outro desafio é a integração entre sistemas. O ambiente hospitalar é composto por diferentes plataformas — HIS, LIS, RIS e PACS — que muitas vezes operam de forma isolada. “Para que a IA atue de maneira realmente estratégica e contextual, é essencial que essas tecnologias conversem entre si e permitam o acesso a dados consistentes e atualizados”, completa o executivo.
Além da governança e da interoperabilidade, o hospital encara obstáculos ligados à maturidade e qualidade dos dados, frequentemente desestruturados ou fragmentados. “A consolidação e padronização dessas informações são etapas fundamentais para ampliar o potencial de uso da IA”, observa Cachello.
Ele também destaca o custo computacional dos modelos mais complexos como um ponto de atenção, exigindo investimentos em infraestrutura, capacitação e comprovação de retorno sobre investimento.
Há ainda uma dimensão cultural que precisa ser consolidada. “A IA deve ser vista como ferramenta de apoio, e não de substituição. Ela amplia a capacidade analítica e de decisão dos profissionais, fortalecendo o cuidado e não o automatizando”, ressalta.
No Oswaldo Cruz, os modelos de IA passam por monitoramento contínuo, com análises periódicas que comparam as previsões e recomendações da tecnologia com os resultados reais. Esse processo permite identificar eventuais desvios de desempenho — o chamado drift algorítmico — e corrigi-los antes que impactem decisões assistenciais.
“Temos equipes multidisciplinares, com profissionais de tecnologia, governança de dados e corpo clínico, assegurando que as ferramentas permaneçam alinhadas aos padrões de qualidade e segurança do hospital”, explica Cachello.
Os efeitos da IA já são perceptíveis tanto na gestão administrativa quanto na assistência. No âmbito clínico, a tecnologia atua de forma contextualizada desde o agendamento do paciente, iniciando jornadas personalizadas que aprimoram a comunicação e o cuidado durante todo o atendimento.
No campo operacional, o uso de plataformas omnichannel centraliza as demandas em um único ambiente, onde a IA apoia a tomada de decisão, prioriza atendimentos e sugere encaminhamentos com base em padrões identificados nos dados.
A integração da IA com o CRM e os canais de relacionamento tem proporcionado ganhos significativos de eficiência e personalização. “Hoje, conseguimos antecipar demandas e oferecer uma jornada mais fluida e centrada no paciente, fortalecendo a conexão entre tecnologia, gestão e cuidado”, comenta Cachello.
No Grupo Fleury, a inteligência artificial evoluiu para muito além da automação de processos — tornou-se uma aliada estratégica na geração de valor clínico, operacional e científico. Hoje, a tecnologia é aplicada em múltiplas frentes, desde o suporte à decisão médica até o aprimoramento da eficiência nos fluxos laboratoriais.
Além do contexto clínico, a IA tem papel fundamental na detecção de anomalias nos processos laboratoriais. Modelos baseados em séries temporais identificam comportamentos incomuns ou eventos significativos nos dados, permitindo uma intervenção precoce por parte dos especialistas. Essa abordagem reduz erros, retrabalho e custos, ao mesmo tempo em que fortalece a confiabilidade dos resultados.
“Nosso objetivo é apoiar a decisão médica com informações mais rápidas e precisas, sem substituir o especialista. Acreditamos na combinação IA + humano, garantindo segurança, qualidade e eficiência na jornada do paciente”, explica Edgar Gil Rizzatti, presidente da Unidade de Negócios Médica, Técnica, Hospitais, Novos Elos e Inovação.
Segundo o executivo, a garantia de qualidade e integração dos dados é um dos maiores desafios na aplicação da IA em saúde. “O Grupo Fleury trabalha com múltiplas fontes — desde equipamentos até laudos estruturados e textos livres —, o que exige interoperabilidade, padronização e rastreabilidade. Essa base é sustentada pela infraestrutura Fleury Data Hub, desenvolvida para integrar dados de forma segura e eficiente.”
Um ponto crítico citado por ele é o drift algorítmico. Para mitigar esse risco, a instituição adota um conjunto de práticas estruturadas que incluem:
“Essas medidas garantem que os modelos mantenham acurácia e relevância mesmo em ambientes dinâmicos, preservando a confiabilidade diagnóstica e operacional.”
A aplicação de inteligência artificial em saúde requer governança sólida, rastreabilidade e validação contínua para assegurar precisão diagnóstica e segurança do paciente. No Grupo Fleury, essas premissas orientam todas as etapas do ciclo de vida dos algoritmos utilizados nas áreas clínica e operacional.
A governança de IA no Fleury baseia-se em uma estrutura integrada que combina comitês internos de ética e tecnologia, protocolos de revalidação periódica e rastreabilidade completa, análises comparativas com processos existentes e monitoramento contínuo de performance.
“Esse conjunto de práticas garante que cada algoritmo seja seguro, auditável e adequado ao contexto clínico real, mantendo altos padrões de precisão e confiabilidade”, acrescenta Rizzatti.
O uso da inteligência artificial já demonstra ganhos expressivos de eficiência e qualidade. Nos exames de imagem, o Grupo Fleury dobrou a capacidade de atendimento por hora, reduziu em 50% o tempo médio nos exames de ressonância magnética e priorizou mais de 1.500 casos graves, acelerando condutas médicas.
Na esfera operacional, a IA otimiza roteirização de coletas domiciliares, elevando a pontualidade e reduzindo custos. Em alguns processos laboratoriais, a produtividade cresceu até 200%, chegando a 500 mil testes por dia.
“Esses resultados são monitorados por meio do Relatório de Melhoria Contínua, documento que compara processos antes e depois das mudanças tecnológicas. Nele, as métricas de eficiência e impacto são conectadas aos indicadores ESG, garantindo transparência e evidências de que o uso de IA melhora não apenas o desempenho técnico, mas também a experiência do paciente e a sustentabilidade do sistema de saúde”, destaca Rizzatti.
O Brasil se aproxima de uma nova fronteira tecnológica, mas seu avanço dependerá da capacidade de alinhar inovação, regulação e propósito social. Mas, como destacam especialistas, o verdadeiro desafio não está no código, e sim na coordenação: criar um ecossistema de confiança, interoperável e ético, que permita à IA operar com segurança e relevância em todos os níveis do cuidado.