A realização da COP30 no Brasil reforça a necessidade e a urgência do debate sobre a transformação ecológica. O agravamento da crise ambiental e climática, nas últimas décadas, evidencia a desconexão entre o modelo de produção e consumo da sociedade e as necessidades sociais e ambientais.
A saúde não está à parte desse cenário. Ao mesmo tempo em que os sistemas de saúde sofrem com as pressões geradas por este modelo, também contribuem para a crise ambiental. Portanto, a saúde pode ser parte fundamental da solução, ajudando a construir um padrão de desenvolvimento sustentável que reposicione as relações entre economia, sociedade e natureza.
Ao redor do mundo, a saúde já responde à crise climática com soluções inovadoras, como o uso de materiais biodegradáveis para a fabricação de próteses, órteses e dispositivos médicos, a utilização de painéis solares em hospitais e combustíveis verdes no transporte médico, além do mapeamento genético da biodiversidade, que abre portas para a descoberta de novos fármacos, valorizando a floresta em pé. Para que essas iniciativas avancem, no entanto, é preciso ir além de soluções pontuais: é necessária uma mudança estrutural, capaz de promover um padrão não predatório de uso dos recursos naturais.
Estudo coordenado pela Fiocruz, em parceira com o Laboratório Nacional de Biociências e o Instituto de Economia da Unicamp, mostra que o Complexo Econômico-Industrial da Saúde, uma das seis áreas prioritárias da Nova Indústria Brasil, desponta como pilar estratégico para alavancar esta mudança, ao integrar CT&I e produção nacional aos desafios do Sistema Único de Saúde (SUS), o maior sistema universal de saúde do mundo em termos de população.
Os dados levantados mostram que a saúde tem grande relevância social, econômica e ambiental no Brasil. Atualmente, responde por cerca de 10% do PIB, 30% do investimento em P&D, empregando mais de 10 milhões de pessoas. Entre 2012 e 2023, enquanto a população ocupada geral cresceu 12,3%, o número de trabalhadores no CEIS aumentou 65,7%, um ritmo muito superior à média nacional.
Além disso, a amplitude e a heterogeneidade de ecossistemas como a Amazônia, o Cerrado, a Mata Atlântica, a Caatinga, o Pantanal e o Pampa, somadas à extensa faixa costeira e marinha, fazem do território nacional um espaço estratégico para promover a convergência entre saúde, biodiversidade e potencial científico. Estima-se que o país concentre entre 15% e 20% de toda a diversidade biológica existente no planeta, ocupando a 6ª posição mundial quando o assunto é pesquisa em biodiversidade, o que corresponde a 7,5% do número de publicações científicas - um valor significativamente superior à média de 2% nas publicações científicas em geral.
Esse dado por si só já coloca o Brasil em uma posição de excepcionalidade no cenário internacional, mas sua importância vai além do aspecto quantitativo. Os biomas brasileiros, além de reservas naturais a serem preservadas, servem também como plataformas de inovação científica e tecnológica, que podem ser translacionadas para o atendimento das demandas de saúde, superando a tradicional segmentação entre políticas sociais, ambientais e econômicas.
A Amazônia, por exemplo, oferece base genética para prospecção de fármacos, vacinas, fitoterápicos e biomateriais, enquanto o Cerrado aparece com compostos antioxidantes e anti-inflamatórios. A Mata Atlântica destaca-se em fitoterápicos e insumos farmacotécnicos, como o medicamento Acheflan, desenvolvido a partir da erva-baleeira (Cordia verbenaceae) e utilizado no tratamento de inflamações. A Caatinga, único bioma exclusivamente brasileiro, reúne moléculas antivirais, anti-inflamatórias, antibióticas, cicatrizantes - como o óleo de licuri (Syagrus coronata) -, e com potencial anticâncer, a exemplo dos derivados do lapachol, extraído de plantas do gênero Tabebuia avellanedae, capazes de inibir a proliferação de células metastáticas.
Essas informações evidenciam que a biodiversidade deve ser vista não apenas como um recurso a explorar, mas concebida como uma infraestrutura viva para inovação, saúde e justiça social. Para isso, é necessária a formulação de uma nova geração de políticas públicas orientadas pelas principais demandas da sociedade - como a ampliação do acesso à saúde, a geração de renda e empregos e a sustentabilidade ambiental.
Nos últimos anos, o Brasil consolidou um conjunto de políticas públicas que abrem condições inéditas para integrar biodiversidade, saúde e desenvolvimento em uma estratégia de Estado. A promulgação do Protocolo de Nagoya, em 2023, estabeleceu a obrigação de alinhar suas práticas de pesquisa e inovação a padrões internacionais de repartição justa e equitativa de benefícios oriundos do uso de recursos genéticos. Trata-se de um passo decisivo para articular ciência e justiça socioambiental, ao assegurar que o aproveitamento da biodiversidade esteja vinculado não apenas à inovação tecnológica, mas também ao reconhecimento e à valorização dos povos e comunidades tradicionais.
No mesmo ano, foi instituída a Estratégia Nacional para o Desenvolvimento do CEIS (Decreto nº 11.715/2023), definindo seis programas estruturantes, com a finalidade de orientar investimentos públicos e privados na busca de soluções produtivas e tecnológicas para ampliar o acesso à saúde e reduzir a vulnerabilidade do SUS. Em 2024, a Nova Indústria Brasil incorporou essa visão, incluindo a meta de ampliar a participação da produção no país de 42% para 70% das necessidades nacionais em medicamentos, vacinas, equipamentos e dispositivos médicos, entre outros, contribuindo para o fortalecimento do SUS e a melhoria do acesso da população à saúde.
No presente, essas condições conferem ao Brasil a oportunidade única de articular biodiversidade e saúde em um Projeto Nacional comprometido com a transformação produtiva e a mudança estrutural. Isso exige ir além de políticas compensatórias que, embora essenciais, quando tomadas como horizonte máximo, apenas reproduzem o receituário clássico de preservação da estrutura econômica e social existente, matriz tanto da desigualdade quanto de um padrão produtivo nacional ambientalmente insustentável.
Por isso, é fundamental o fortalecimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde como pilar estruturante da transformação ecológica, que visa orientar o desenvolvimento da ciência, tecnologia, inovação e produção nacional aos desafios da sustentabilidade, do bem-estar e da soberania.
Carlos Gadelha é professor e pesquisador da Fiocruz.
Maria Augusta Arruda é diretora do LNBio/CNPEM.
Marcelo Manzano é diretor do CESIT/IE-Unicamp.