Com salas conectadas e IA, hospitais inauguram era da cirurgia digital
03/12/2025

Depois de anos de pesquisa, a telecirurgia entrou em sua fase inicial de aplicação no Brasil. Os casos ainda são pontuais, mas tecnicamente bem-sucedidos, suficientes para demonstrar que, com conectividade estável e equipes preparadas, operar um paciente a milhares de quilômetros deixou de ser um experimento. 

Em setembro, o professor Leandro Totti Cavazzola, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, operou uma hérnia em Curitiba a partir do Kuwait, a mais de 12 mil quilômetros de distância. O procedimento foi reconhecido pelo Guinness como a telecirurgia robótica mais distante já registrada. No mesmo dia, uma equipe kuwaitiana esteve no Brasil e operou um paciente do país do Golfo Pérsico, invertendo os papéis. Foi a primeira experiência mundial de telecirurgia robótica com duas equipes e dois robôs atuando em continentes diferentes. A conexão atingiu latência ultrabaixa — tempo entre o comando do cirurgião e o movimento do robô —, condição essencial para a precisão. Quanto menor, mais segura é a operação. 

O fato coincidiu com outro marco: a primeira telecirurgia robótica não experimental da América Latina, realizada em outubro entre o Hospital Nove de Julho, em São Paulo, e o Hospital Mãe de Deus, em Porto Alegre. “Foi uma cirurgia assistencial, com todas as aprovações da Anvisa”, afirma o urologista Rafael Coelho, do Nove de Julho, responsável pelo procedimento (para tratar um câncer de próstata). Um centro experiente conectou-se a outro que estava iniciando seu programa robótico. “Isso abre um novo capítulo”, afirma o especialista. O equipamento foi operado em São Paulo e o paciente estava em Porto Alegre. A latência ficou próxima de 30 milissegundos, “praticamente em tempo real”, diz Coelho. 
 

Sérgio Araújo, diretor da rede cirúrgica do Hospital Israelita Albert Einstein, explica que a robótica já opera integrada a softwares com IA embarcada. “Hoje trabalhamos com sistemas capazes de reconhecer padrões, sugerir trajetórias cirúrgicas e emitir alertas intraoperatórios.” A tecnologia, afirma ele, não substitui o julgamento humano, mas adiciona camadas de visão e segurança. “O cirurgião deixa de atuar apenas pelo que enxerga a olho nu e passa a contar com análise computacional em tempo real.” 

Araújo acredita que o futuro próximo mistura robótica, IA e redes privadas 5G em um mesmo ecossistema assistencial. O Einstein já utiliza teleassistência para exames como ecocardiograma e ultrassonografia, laudados a partir de São Paulo. “A teleoperação total ainda é exceção, mas o suporte remoto já está virando prática, especialmente em regiões com vazio assistencial.” 

Para ele, a sala cirúrgica está deixando de ser física: “O robô deixa de ser uma ilha e passa a fazer parte da infraestrutura digital do hospital”. 

Outro elo dessa arquitetura tecnológica é o InovaHC, núcleo de inovação do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-USP). Para o seu presidente, Giovanni Cerri, vivemos um momento de virada. “A telecirurgia sai da experimentação de laboratório e vai para uso assistencial com rigor clínico”, afirma. O núcleo realiza pilotos de UTI digital e projetos de telessaúde em várias regiões do Brasil, como na Amazônia. Mas Cerri reforça que há condições mínimas para que isso se torne rotina: “Não basta transmitir vídeo. São necessárias redes de alta velocidade e equipes capazes de assumir o procedimento, o que passa por regulação, infraestrutura e treinamento”. 

No Hospital Sírio-Libanês, a estratégia de inovação foi reforçada com a inauguração da sala híbrida, que une procedimentos minimamente invasivos e cirurgias abertas no mesmo ambiente. “Se a cirurgia por cateter precisar ser convertida em aberta, isso acontece sem deslocar o paciente”, diz Sérgio Arap, diretor adjunto médico do centro cirúrgico. A sala conta com um arco de imagem ARTIS Pheno (da Siemens), que combina raios X, ultrassom, tomografia e ressonância em tempo real. 

Seu colega Anuar Mitre acrescenta que a expansão da robótica exige mais do que adquirir equipamentos. “Existe um imaginário de que o robô, por ser preciso, fará tudo melhor. Não é assim. Ele depende de treinamento e prática.” Mitre lembra ainda que plataformas custam de US$ 1,5 milhão a US$ 2 milhões, além de manutenção e instrumentais. “Tecnologia sem processo não garante desfecho.” 

A Beneficência Portuguesa (BP) de São Paulo tem testado aplicações de conectividade no Sistema Único de Saúde (SUS). Em parceria com o InovaHC, Samsung Brasil e CPQD, o projeto OpenCare 5G reduziu de 180 para 19 dias a espera por ecocardiogramas em Miguel Alves (PI), com exames realizados localmente e laudo remoto em São Paulo. Segundo Gustavo Guimarães, coordenador-geral dos departamentos cirúrgicos oncológicos, a orientação do especialista em tempo real evita transferências desnecessárias e qualifica equipes locais. A BP já ultrapassou 3,5 mil cirurgias robóticas e prevê crescimento com a incorporação da prostatectomia robótica ao SUS, aprovada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) no SUS. 

Com o setor avançando, surgem demandas jurídicas. Para Danielle Serafino, sócia do escritório Opice Blum Advogados, telecirurgia e IA embarcada exigem governança robusta. “A base legal existe — a Lei 14.510 e as resoluções do CFM [Conselho Federal de Medicina] autorizam telemedicina e disciplinam a cirurgia robótica —, mas a execução requer padrões de cibersegurança, rastreabilidade de dados e auditoria de latência. É obrigatório haver cirurgião local apto a assumir o procedimento em contingência.” 
 

No setor privado como um todo, a cirurgia robótica vive momento de expansão. O Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre (RS), opera múltiplas plataformas (Da Vinci, Mako, ROSA, Versius, CIRQ) e superou 1,1 mil cirurgias robóticas apenas em 2025. 

Para a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), esse avanço se sustenta em uma mudança estrutural. “Os hospitais deixaram de tratar inovação como laboratórios isolados. Ela está integrada ao core assistencial, TI, operações e negócios clínicos”, afirma Felipe Cabral, coordenador do grupo de trabalho de tecnologia e inovação da Anahp e gerente médico de saúde digital do Hospital Moinhos de Vento. 

Ele observa que, embora o país já tenha arcabouço legal, ainda faltam padrões técnicos nacionais, modelos de remuneração e incentivos para ganhar escala. O custo total permanece elevado, as operadoras nem sempre reconhecem a via robótica como procedimento autônomo e, no SUS, não há código específico. Mesmo assim, ele vê uma transição decisiva: a robótica caminhando para a cirurgia digital, com IA, conectividade de baixa latência e governança clínica integrando hospitais. 





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