O Conselho Federal de Medicina (CFM), desde março deste ano, implementou uma norma que exige que médicos informem ao Conselho a existência de vínculos com empresas farmacêuticas e fabricantes de próteses, como participação em palestras, consultorias ou pesquisas. Entretanto, em uma notícia recente foi informado que apenas 30 médicos brasileiros declararam vínculos com a indústria da saúde, conforme determina o CFM. E esse número se torna mais preocupante quando vemos o último levantamento do Conselho, de 2024, que diz que o Brasil possui 575.930 médicos ativos.
Vale dizer que, a norma não exige que o profissional declare informações sobre valores recebidos ou outros benefícios, somente a existência do vínculo. Ou seja, não se trata de proibir a relação entre médicos e indústria, mas de garantir que essas conexões sejam transparentes.
O problema surge quando essas relações permanecem ocultas, comprometendo a credibilidade das decisões clínicas e da própria medicina como instituição social.
A transparência é um valor ético fundamental e não uma mera exigência burocrática. É o que permite ao paciente compreender o contexto em que determinada conduta médica é adotada e ao mesmo tempo preservar a integridade do profissional. A bioética nos ensina que o dever de declarar vínculos é um compromisso com a justiça e com a confiança pública, princípios que sustentam a autonomia e segurança do paciente, além da integridade da relação médico-paciente.
Também, não podemos decretar o baixo índice de declarações somente por falta de comunicação institucional. Ele também reflete a fragilidade da cultura de compliance no ambiente médico e a resistência que ainda existe quando o assunto é prestação de contas. O CFM, ao criar a resolução, deu um passo importante, mas a ausência de divulgação ampla, de mecanismos simples de declaração e da publicação dos dados em formato acessível à sociedade enfraquece o alcance da medida. Transparência não se impõe apenas por norma, ela se constrói com educação, sensibilização e exemplo.
Nos Estados Unidos, por exemplo, existe a lei Sunshine Act que obriga a divulgação pública dos pagamentos realizados pela indústria a médicos, com detalhamento de valores e natureza dos serviços. O objetivo é garantir que eventuais conflitos de interesse sejam conhecidos e geridos de maneira responsável. No Brasil, a resolução do CFM é um passo inicial na mesma direção, mas ainda tímido diante do tamanho do desafio.
Por isso, falar sobre conflito de interesse não é apontar culpa, é reconhecer que o exercício da medicina acontece em um ambiente complexo, onde ciência, mercado e assistência se entrelaçam. O que se espera de uma instituição madura, é que reconheça esses riscos e os administre com transparência e ética. A omissão, por outro lado, fragiliza a confiança do paciente, expõe o profissional e compromete a credibilidade do sistema.
A bioética e o compliance caminham lado a lado na construção de uma cultura de integridade. É preciso que médicos, gestores e entidades representativas compreendam que declarar vínculos não é se expor, mas se proteger. A transparência fortalece o cuidado, protege o paciente e preserva a dignidade da profissão.
*Camila Cortez é advogada, consultora, palestrante especializada em Bioética, Direito Médico e Healthcare Compliance, fundadora da KCortez Consultoria, Diretora e Professora do Instituto BIOMEDS.