Com quase 500 mil afastamentos concedidos apenas em 2024 – o maior número registrado nos últimos 10 anos segundo o Ministério da Previdência Social – é inegável que o Brasil vive uma crise de saúde mental. Contudo, dentre as doenças e transtornos responsáveis pelas licenças médicas, uma é mais temerária: a síndrome de burnout. Afinal, a condição, antes classificada como um estado de exaustão inserido entre fatores que influenciam a saúde, passou a ser definida, exclusivamente, como um fenômeno relacionado ao trabalho. Inclusive, empresas que recebem um atestado médico com o CID QD85 devem emitir um Comunicado de Acidente do Trabalho (CAT), embora não sejam obrigadas a aceitar o diagnóstico e possam impugná-lo, desde que registrem no prontuário os achados clínicos que justifiquem a discordância e realizem o devido exame do trabalhador.
Nesse sentindo, a primeira questão a ser enfrentada é como um médico poderá dar um diagnóstico relacionado ao trabalho sem conhecer o ambiente laboral?
Nos termos do parágrafo 2º, artigo 6 da Lei n. 605/1949, a doença poderá ser comprovada por meio de atestado médico do INSS, ou sucessivamente, por médico da empresa ou de convênio por ela subsidiado, por médicos do serviço público ou médico da escolha do trabalhador. Aqui, a jurisprudência é pacífica sobre a ordem de preferência estabelecida em Lei, nos termos da Súmula n. 15 do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Assim, o atestado do médico do trabalho da empresa tem mais validade que de um médico particular.
Ainda, de acordo com o art. 2 da Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 2.323/2022, para o diagnóstico do nexo causal entre os transtornos de saúde e as atividades do trabalho, além da anamnese, do exame clínico (físico e mental), de relatórios e exames complementares, o médico deverá considerar: a história clínica e ocupacional atual e pregressa, decisiva em qualquer diagnóstico e/ou investigação de nexo causal; o estudo do local de trabalho; o estudo da organização do trabalho; os dados epidemiológicos; a literatura científica; a ocorrência de quadro clínico ou subclínico em trabalhadores expostos a riscos semelhantes; a identificação de riscos físicos, químicos, biológicos, mecânicos, estressantes e outros; o depoimento e a experiência dos trabalhadores e os conhecimentos e as práticas de outras disciplinas e de seus profissionais, sejam ou não da área da saúde.
Desta forma, chega a ser temerário um médico, que desconhece as relações do trabalho, emitir um atestado de burnout, estando sujeito, inclusive, à denúncia ao Conselho Federal de Medicina (CFM).
Igualmente temerário é o cenário que se instaura para as empresas que recebem esses afastamentos.
O desencadeamento de burnout poderá ensejar um pedido de dano e assédio moral no âmbito trabalhista. Outra problemática enfrentada é o reflexo dos afastamentos por doença ou acidentes do trabalho na tributação da empresa, no chamado Fator Acidentário de Prevenção (FAP). A legislação brasileira optou por beneficiar o bom empregador e tributar em valor maior o empregador que tiver maior número de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho. O FAP é um multiplicador, atualmente calculado por estabelecimento, que varia de 0,5000 a 2,0000, a ser aplicado sobre as alíquotas de 1%, 2% ou 3% da tarifação coletiva por subclasse econômica, incidentes sobre a folha de salários das empresas para custear aposentadorias especiais e benefícios decorrentes de acidentes de trabalho.
Pela metodologia do FAP, as empresas que registrarem maior número de acidentes ou doenças ocupacionais, pagam mais. Por outro lado, esse fator aumenta a bonificação das empresas que registram acidentalidade menor. No caso de nenhum evento de acidente de trabalho, a empresa é bonificada com a redução de 50% da alíquota. Dessa forma, a questão poderá não só criar passivo trabalhista como previdenciário.
É necessário, portanto, colocar o burnout no lugar em que ele merece, sem superestimá-lo nem o subestimar, apenas entender que se trata de uma exaustão causada pelo trabalho e que o correto tratamento é o descanso.
Esse estado deve, sem dúvida, ser evitado, devendo as empresas estarem atentas ao seu ambiente de trabalho, principalmente após maio de 2026, data em que entra em vigor a inclusão dos riscos psicossociais no Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR). As empresas que não se anteciparem ficarão expostas a perigos concretos: judiciais, financeiros e reputacionais.
Encarar a saúde mental como um pilar estratégico fortalece a sustentabilidade do negócio e atrai talentos alinhados aos princípios de ESG.
Todavia, é necessária uma ponderação para que se evite a própria banalização do burnout, ou que venha a ser comparado com doenças muito mais graves e que, essas sim, merecem a punição devida, diante do grau de gravidade envolvido.
No âmbito do judiciário, a ponderação quanto ao dano efetivo deve ser analisada com parcimônia, sem que se confunda com doenças ou transtornos mentais, por tecnicamente, não possuir esse enquadramento.
Por uma questão legislativa previdenciária brasileira, ele é enquadrado como doença e, diante disso, deve ser tratada como tal, com todas as precauções necessárias, sendo extremamente importante que seja diagnosticado dentro da ética médica recomendada pelo próprio Conselho Federal de Medicina, podendo ser impugnado o diagnóstico pelo médico da empresa.
*Paula Collesi é mestre em Direito do Trabalho pela Universidade de Lisboa e sócia do Ovidio Collesi Advogados Associados.