Mudança de hábito
Valor Econômico
01/04/2013

Mudança de hábito

Por Karla Spotorno | De São Paulo
 
Luis Ushirobira/Valor / Luis Ushirobira/Valor
Flávia e Jeffrey Abrahams: "Estamos tomando consciência de que alguns preços são um verdadeiro abuso"

 

Jeffrey Abrahams, 65 anos, é headhunter. Mais de 75% dos negócios da consultoria que leva seu nome vêm de multinacionais ligadas ao agronegócio, setor com potencial para crescer acima da média da economia brasileira como um todo.

Mesmo com perspectivas positivas e os negócios bem encaminhados, Abrahams decidiu cortar despesas. Mudar alguns hábitos. E ele não teve nenhuma despesa pessoal inesperada. Nem foi excluído do topo da pirâmide social. Ele e a esposa Flávia continuam integrando a classe A, quando se considera a classificação da Fundação Getulio Vargas - que estipulou como A quem tem renda superior a R$ 9.745 por mês. A mudança de hábitos tem outra justificativa.

"Estamos tomando consciência de que alguns preços são um verdadeiro abuso", diz Flávia, artista plástica de 63 anos. Abrahams enumera alguns que classifica como revoltantes: a consulta médica dobrou de preço; os remédios de uso crônico subiram muito; o charuto brasileiro ficou mais caro que o cubano; o custo do estacionamento extrapolou "o limite do bom senso". Fora os cuidados com higiene pessoal, como cabelo e manicure. "No salão onde eu ia toda semana, o preço da manicure subiu para R$ 45. Agora, pago menos da metade no meu bairro", diz Flávia. O hábito de almoçar e jantar fora semanalmente também foi abandonado. "Os preços nos restaurantes ficaram abusivos. Percebo que a minha inflação é mais alta do que a que vejo nas notícias", afirma Abrahams.

Muito provavelmente, essa é a verdade. O índice oficial de inflação no Brasil, o IPCA, não mostra uma alta tão forte nos preços quanto a percebida pelo consultor. Nos últimos 12 meses encerrados em fevereiro, o indicador calculado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apontou que, na média, a cesta de produtos e serviços do brasileiro encareceu 6,31%. O descolamento entre a inflação de Abrahams e o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) pode ser facilmente compreendida. O índice, usado pelo BC como referência para compor a meta de inflação da política monetária, é amplo - como bem esclarece o nome. "O objetivo do IPCA é monitorar a variação de preços no consumo das famílias da forma mais abrangente possível. Por isso, quando é feita a individualização da cesta de produtos e serviços, há diferenças importantes", afirma Eulina Nunes, coordenadora dos índices de preços ao consumidor do IBGE.

Quem raramente viaja de avião, por exemplo, não deve ter percebido um aumento tão importante em seus gastos quanto quem viaja. Como mostra a tabela nesta página, as passagens aéreas ficaram quase 300% mais caras nos últimos 10 anos, segundo o IBGE. O ajuste nem se compara ao IPCA, que subiu 76,6% no período. "Por outro lado, quem comprou bens duráveis no ano passado pode ter se beneficiado da queda nos preços com as desonerações de impostos. Em geral, foi o que aconteceu com a classe C, que ganhou acesso a esses bens", diz Eulina.

 

 

Olhando o avanço das centenas de itens pesquisados pelo IPCA, é possível tirar uma conclusão conceitual não muito positiva. Por um lado, o Brasil está se aproximando dos países desenvolvidos, onde os serviços são mais caros (veja a tabela nesta página). Por outro, mantém as características de Terceiro Mundo, onde os bens são muito caros. "No exterior, os serviços custam muito, mas os produtos, não. O dilema brasileiro é que os serviços estão encarecendo e os produtos também", afirma Ricardo Denadai, economista-chefe da Santander Asset Management.

O dilema se explica, pelo menos em parte, no aumento da massa salarial. Com uma taxa de desemprego em níveis similares ao de países como a Dinamarca, o novo Brasil permitiu que mais pessoas passassem a participar ativamente do mercado consumidor. Os dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) mostram que quanto menor a faixa salarial maior foi o reajuste salarial entre 2004 e 2011. Para os 10% com maior rendimento, o ganho real foi de 21%. Para os 20% da população com menor rendimento, o ganho real foi de 74% no período. "O aumento do salário mínimo causa um impacto inercial significativo na inflação. Em 2012, o reajuste nominal foi de 14%. Nesse ano, de 9%", afirma Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados.

Marcelo Néri, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), afirma que o aumento da renda e a expansão do que chamou de nova classe média se manteve mesmo no ano do "pibinho" - em 2012, quando o PIB brasileiro cresceu apenas 0,9%. "Os dados de renda do trabalho e de benefícios evidenciam que, mesmo em um ano de menor crescimento do PIB per capita, a desigualdade social continua diminuindo", diz Néri.

Além de contribuir para a redução da desigualdade social, o menor crescimento da renda de quem ganha mais - mas não é multimilionário - tende a provocar a redução do consumo, como no caso dos Abrahams. O mesmo comportamento pode ser visto na casa da empresária Katia Machado. Casada e mãe de duas crianças em fase escolar, ela também decidiu rever seus custos. Cortou os gastos com a TV a cabo, com as compras semanais de legumes e frutas, com os presentes dos filhos e dos amigos dos filhos e até a verba para material de limpeza. Há alguns meses, decidiu desligar duas pessoas que trabalhavam como diaristas em sua residência. Ficou com a empregada doméstica, que cozinha e arruma a casa, e com a faxineira para a limpeza mais pesada. "A escola das crianças dobrou de preço, porque elas saíram da educação infantil e entraram no ensino fundamental. Minha renda não acompanhou tudo isso", diz a empresária de 42 anos.

Para driblar os altos preços de roupas e acessórios para bebês no Brasil, a professora de balé Sabrina Martins Schvarcz tomou a mesma decisão de algumas mães brasileiras. Viajou para Miami na baixa temporada e comprou o enxoval das trigêmeas em outlets americanos. Embarcou grávida, com a mãe, a irmã, a cunhada e dois sobrinhos. A viagem de compras de cinco dias proporcionou uma economia de R$ 6 mil para Sabrina, mãe das gêmeas Melissa, Cecília e Laura, hoje com um ano e meio, e também de Luana, de nove anos, e Alexandre, de sete anos.

Otávio Vieira, sócio da Fides Asset Management, também tem preferido fazer compras no exterior. Aproveita as viagens a trabalho e de lazer para comprar roupas, calçados, perfumes. Ele e Sabrina se somam às estatísticas que mostram o aumento recorde de gastos no exterior. Em fevereiro, os turistas brasileiros gastaram US$ 1,858 bilhão, segundo o BC. Foi o maior resultado da série histórica para esse mês desde 1969. O recorde para todos os meses do ano foi registrado em janeiro deste ano (US$ 2,293 bilhões). "Minha esposa e eu estamos planejando o primeiro filho e já pensamos em comprar o enxoval lá fora", diz Vieira que, assim como o casal Abrahams, reduziu as idas a restaurantes.

Olhando para frente, os economistas afirmam que é difícil ver alguma mudança na trajetória dos fatores macroeconômicos que elevam os preços no Brasil. Para André Braz, economista da FGV especializado em inflação, o mercado de trabalho aquecido e a massa salarial em alta conduzem à manutenção do contexto inflacionário.

Vale, da MB Associados, também acredita que a inflação de serviços superior à média geral é uma realidade que veio para ficar. "A tendência é que os serviços passem a subir a dois dígitos", diz Vale. Muitos brasileiros que ingressaram no mercado consumidor são trabalhadores que têm a renda indexada ao salário mínimo - o qual vem sendo reajustado ano a ano - ou são prestadores de serviços. Nesse caso, eles acabam se beneficiando dos aumentos nos preços. Alguns são pequenos empreendedores que montaram um salão de beleza no bairro ou um bufê de festas. Outros são diaristas que passaram a cobrar mais pela faxina.

Diante desta nova realidade, famílias como a de Abrahams, Katia, Sabrina e Vieira continuarão racionalizando seus custos. "Não dá mais para continuar queimando dinheiro", diz Abrahams.

 

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