Sem alta no orçamento e com menos pessoal, Mais Médicos estaciona
07/03/2018
A médica Leslie Isaac, 31 anos, está ansiosa pelas férias. Após um ano no Brasil, ela poderá finalmente visitar os pais em Villa Clara, província de pouco mais de 600 mil habitantes em Cuba, onde ela nasceu. O pai de Leslie, aliás, foi quem inspirou a decisão da médica de trabalhar no Brasil; ele integrou, em 2013, a primeira leva de profissionais cubanos que chegaram ao país no âmbito do programa Mais Médicos. "Eu vim em março do ano passado, ele foi embora em agosto", conta Leslie, que lembra das polêmicas e do preconceito que cercaram a vinda dos cubanos na época em que o pai chegou ao país. "Diziam que os médicos cubanos eram curandeiros, que tinha cara de empregada doméstica", lembra o diretor da secretaria de saúde de Pedreira, Eduardo Francisco Mestre Rodriguez, um médico cubano que chegou à cidade nos anos 1990, convidado pela prefeitura para implementar programas de saúde da família inspirados na experiência de Cuba. "Na época, eu fui muito bem recebido. Todo mundo queria me conhecer", lembra. Rodriguez garante que, em Pedreira, nenhum cubano do Mais Médicos jamais foi hostilizado. "Já estavam acostumados comigo", brinca.

A exemplo do diretor, Leslie diz que sua experiência no Brasil tem sido muito positiva. "Por enquanto, está tudo legal", diz ela, que mora sozinha em uma casa custeada e mobiliada pela prefeitura de Pedreira, cidade de 46 mil habitantes a 50 km de Campinas. Como cortesia, a prefeitura também transporta a médica diariamente até a unidade de saúde da família Benedito Candido da Silva, o posto de saúde do Jardim Andrade, na periferia. O local foi uma das primeiras unidades do país a receber médicos cubanos, logo no início do programa, e já foi visitado outras duas vezes pelo Valor: em 2013, antes do Mais Médicos, e de novo em 2014.

Anunciado em 2013 no governo Dilma Rousseff com a missão de ampliar o atendimento à saúde básica depois das manifestações de junho e levar profissionais de saúde a cidades em que era difícil contratar médicos brasileiros, o Mais Médicos acumula uma série de bons indicadores, mas parou de crescer. No fim do ano passado, um total de 17.584 médicos atuavam no programa, total aquém das 18,2 mil vagas oferecidas - o mesmo número desde 2015. A participação dos cubanos ainda é alta: ocupam 8.557 dos postos do Mais Médicos, mais que os 8.459 brasileiros. A Saúde diz que a meta do governo federal é reduzir a presença cubana a 7,4 mil participantes. Os que deixarem o programa serão gradualmente substituídos por profissionais brasileiros.

"Os cubanos ainda são importantes em lugares como Pedreira", diz Rodriguez, que destaca que ainda é difícil atrair médicos brasileiros a alguns municípios.

Diferentes estudos e pesquisas são unânimes ao apontar que o Mais Médicos ampliou o atendimento à saúde básica no Brasil. A população médica brasileira, que em 2013 era de 1,8 médico a cada mil habitantes, muito menor que a da Argentina (3,9) e de diversos países que têm sistemas de saúde universais, como Canadá (2,4), Reino Unido (2,7), Espanha (3,5) e Portugal (3,8), aumentou para 2,1 médicos a cada mil habitantes em 2015, dado mais recente do Ministério da Saúde. Relatório do TCU de março de 2017 aponta que o número de consultas médicas realizadas nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) saltou de 79 mil, antes do Mais Médicos, para mais de 100 mil atendimentos um ano após o início do programa. Mais de 63 milhões de pessoas, de acordo com o TCU, são assistidas e beneficiadas pelo programa.

Estudo feito por um grupo de pesquisadores do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, da Fundação Oswaldo Cruz, em Pernambuco, estima que as novas equipes de saúde da família criadas no Mais Médicos tenham incluído mais de 20 milhões de pessoas no sistema de saúde brasileiro, especialmente nas áreas de maior vulnerabilidade social.

"Em 2012, havia 33,4 mil equipes de saúde da família no Brasil, cobrindo 54,8% da população. Em 2015, em dois anos de programa, 40,1 mil equipes cobriam 63,7% da população brasileira", estima Antonio da Cruz Gouveia Mendes, coordenador do grupo de pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz que dedicou-se a analisar o processo de implementação do programa. A região Norte incorporou a maior parte dessas novas equipes, aponta o estudo: 52,8% do total. Em valores absolutos, a região Nordeste recebeu o maior número de equipes de saúde da família: 6.064.

Cruz diz que a partir de 2016, no entanto, a cobertura nos programas de saúde da família parou de crescer. "Há uma estagnação. Como o SUS cobre 80% da população, ainda teria um espaço grande de crescimento", alerta Cruz, que acrescenta que, se a saúde básica falta, a população lota os hospitais e para resolver problemas simples do ponto de vista médico.

O orçamento também estagnou. Segundo o Ministério da Saúde, o previsto para o Mais Médicos em 2018 é de R$ 3,3 bilhões, praticamente o mesmo de 2017 (R$ 3,2 bilhões) e pouco mais que os R$ 2,7 bilhões de 2016, em números que não consideram a inflação.

O médico Hêider Pinto, que foi diretor de atenção básica do ministério da Saúde de 2011 a 2014, diz que os números do orçamento da Saúde escondem o fato de que o Mais Médicos está diminuindo. Na estimativa do médico, em abril de 2017 o número de médicos estava em torno de 16 mil, e o de municípios atendidos caído a 3,8 mil, "voltando, portanto, ao patamar de 2014". O ministério da Saúde disse que o programa cobre 4,1 mil municípios, mas não informa a que data esse número se refere.

A estagnação também se reflete no tamanho das filas e no número de atendimentos realizados diariamente no posto de saúde do Jardim Andrade, em Pedreira. Vinte minutos antes da abertura dos portões, cerca de 12 pessoas já aguardavam na fila, cena parecida com a que o Valor testemunhou em 2014. Dona Dinah Aparecida Gonçalves, 59 anos, chegou às 6h35 da quinta-feira, em busca de um pedido para exame de rotina. "Gosto da médica cubana, não senti diferença", diz ela, que foi atendida por Leslie por volta das 10h. Solange dos Santos Souza, 37 anos e grávida de quatro meses, chegou à fila antes das 7h para pegar senha para a filha de 17 anos. "Ela está com muita dor no estômago, vim junto para explicar à médica", diz Solange, que não tem queixas sobre o atendimento. "O ruim é só o horário. Chego cedo, saio quase meio dia", reclama Solange.

Pedreira atualmente tem quatro equipes de saúde da família, três médicos cubanos e um brasileiro: mesmo número de 2014. O pesquisador Antonio Cruz, da Fiocruz, estima que a demanda de Pedreira exigiria sete equipes. "Eu acho que caberia mais um médico. Ou até mais um posto para o bairro, que é muito grande", concorda o médico brasileiro Flavio Blois que, de 2008 a 2013, foi o único no posto do Jardim Andrade. A quantidade de senhas distribuídas por dia aos pacientes na fila subiu de 16 para 32 no primeiro ano após o programa, mas não aumentou desde então.

"Desde então a demanda aqui no posto cresceu, e temos áreas descobertas". Ele diz que a região recebeu novos conjuntos de prédios habitacionais, e moradores de outros bairros migraram para mais perto do Jardim Andrade. Em 2014, a unidade cobria 5 mil famílias. Atualmente, a prefeitura de Pedreira diz que não faz ideia de quantas pessoas moram na região.

"Estou PhD em médicos cubanos", brinca o brasileiro, que já dividiu o atendimento do posto com três colegas cubanos que passaram por lá. Destoando do que dizem as entidades médicas, Blois considera a qualidade técnica dos profissionais cubanos inquestionável. "Muitos criticam sem conhecer", diz. Ele atende 16 pessoas a cada manhã, em ordem de chegada. Sua colega cubana atual, Leslie, atende outros 16.

O médico brasileiro mantém, porém, as críticas que fazia em 2014 ao formato do programa.

"Eles deveriam ter CRM, como os brasileiros", diz, referindo-se à lei do Mais Médicos, que autorizou os cubanos a trabalharem em saúde da família com registro profissional concedido pelo Ministério da Saúde, e não dos conselhos regionais e medicina (CRM). A qualificação dos médicos cubanos continua a ser questionada por entidades médicas como a Federação Nacional dos Médicos (Fenam). Jorge Darze, presidente da entidade, diz que o programa é ilegal. A classe médica brasileira defende uma carreira de Estado para médicos, a exemplo da que existe para os juízes que moram em pequenas cidades no interior. "É preciso revalidar o diploma, ter proficiência da língua. Muitos nem falam português", diz.

As pesquisas indicam, no entanto, que a barreira do idioma não chegou a ser um problema para a maioria dos pacientes. Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que mostrou que 94% dos 14 mil entrevistados disseram estar satisfeitos com os médicos do programa, incluindo os cubanos. No texto do ano passado, o ministro Benjamin Zymler disse que a presença dos cubanos é "imprescindível" no momento.


Fonte: Valor




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