Ética e transplante de órgãos
14/06/2018
Passados 30 anos do primeiro transplante de fígado com doador vivo, justificam-se algumas considerações sobre como evolui a cirurgia e quais reações desperta no meio médico e na sociedade em geral.

Apesar de a nova técnica ter sido aprovada pela Comissão de Ética do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), suscitou uma série de discussões em outros centros nacionais e internacionais focalizando a transgressão do primeiro princípio da ética médica, primum non nocere (antes de tudo não fazer o mal). A dimensão das críticas pode ser avaliada num editorial da conceituada revista Lancet (McMaster P., Live donors and hepatic transplantation, 1989).

De fato, a retirada de um fragmento de fígado de um doador sadio – se não for sadio não pode ser doador – representa uma agressão dificilmente interpretada como um ato que o beneficie diretamente. Além do risco do ato cirúrgico em si, deve-se considerar a possibilidade de uma regeneração que não substitua perfeitamente o fragmento de fígado retirado.

Para transgredir esse princípio nos baseamos no conhecimento de que o fígado sistematicamente se regenera após a retirada de uma parte e que a ressecção dos segmentos II e III (30% do fígado) constitui procedimento de baixo risco, como havia sido comprovado por nós em dezenas de casos operados sem mortalidade ou complicações. Além disso, métodos radiológicos, já disponíveis à época, permitiam identificar com segurança a rede vascular e a via biliar, conferindo segurança na escolha do plano de ressecção. Os doadores em potencial, preferencialmente familiares do receptor, foram submetidos a uma avaliação psiquiátrica e assinaram um termo de consentimento informado sobre todos os aspectos e riscos da doação.

Do ponto de vista ético, nós nos baseamos no princípio da autonomia, que garante a todo ser humano o direito de decidir sobre o seu corpo. A nosso ver, não existe diferença entre a doação de um rim, milhares de vezes já realizada, e a doação de um fragmento de fígado, ressaltando-se que o rim não se regenera.

Ao descrevermos a técnica, pretendíamos contornar, em nosso meio e em todos os países, a falta de doadores falecidos pediátricos. Felizmente, é rara a ocorrência de morte cerebral em crianças, que são mais protegidas da violência e das doenças degenerativas em relação aos adultos.

Depois de três anos do primeiro caso, fomos consultados pelo professor Koichi Tanaka, da Universidade de Kyoto, sobre a possibilidade de realizar a mesma técnica em adultos, já que no Japão e em outros países do Oriente a religião xintoísta e costumes tradicionais proíbem a retirada de órgãos de doadores falecidos. Comentamos que não tínhamos aplicado a técnica em adultos, uma vez que para esses é necessário retirar entre 50% e 60% do fígado do doador por meio de uma cirurgia de risco seguramente maior.

Apesar disso, o professor Tanaka realizou a técnica em adultos, tendo sido seguido por muitos cirurgiões orientais. Em decorrência dos bons resultados em grandes casuísticas, nós, aqui, no Brasil, passamos a realizar a nova técnica, com sucesso também em adultos.

Estima-se que no Brasil já tenham sido realizados mais de 2.500 transplantes intervivos e no mundo, cerca de 50 mil. Deve-se salientar que nesses países, não existindo a possibilidade de realizar transplantes com doador falecido, e onde o transplante de fígado só é indicado quando não há alternativas para evitar o óbito em curto espaço de tempo, em todos esses casos os pacientes tiveram a vida salva pela técnica intervivos.

Uma análise abrangente de todos esses fatos mostra que o progresso tecnológico determina, progressivamente, a substituição da ética da convicção, baseada em princípios rígidos e imutáveis, pela ética da responsabilidade, baseada em princípios mutáveis, uma vez que julga os atos pelos efeitos que determinam.

Olhando para o futuro nos deparamos com um cenário semelhante ao causado pelo transplante de fígado com doador vivo. A falta de doadores falecidos não é só pediátrica, mas interessa a todos os candidatos a transplante, independentemente de sua idade. Em 2017, só no Brasil faleceram 1.176 pacientes em lista de espera para transplante de rim.

Compreende-se assim a procura, em todos os centros mais avançados, de órgãos adicionais que possam atender a toda essa demanda reprimida. Entre as tentativas destaca-se a do xenotransplante, que pretende usar rins de suínos para transplante no homem. Por engenharia genética se modifica o genoma do zigoto (ovo) de suínos, retirando os genes responsáveis pela (produção de) modificação em proteínas, causa da rejeição hiperaguda, que até agora impedia essa alternativa.

Restava solucionar outro problema: frequentemente os suínos são portadores de viroses que podem ser transmitidas ao receptor e, assim, contaminar pessoas sadias que com ele convivam. O principio ético da prevenção impedia qualquer tentativa desse tipo.

Entretanto, o desenvolvimento da técnica CRISPRCas9, capaz de manusear com grande facilidade e segurança o genoma de qualquer ser vivo, permite remover do DNA genômico suíno as cópias do gene PERV pol e, assim, garantir a produção de doadores sem risco de contaminação. Abre-se dessa maneira a possibilidade do xenotransplante de rim suíno sem risco de rejeição hiperaguda e contaminação viral.

Certamente o transplante de órgãos animais em seres humanos suscitará discussões éticas, religiosas e legais. Esperemos que sejam superadas da mesma forma que ocorreu com o transplante de fígado intervivos. Uma das grandezas da mente humana é sua capacidade de abrir-se cada vez mais diante de qualquer nova percepção.

Técnica CRISPR-Cas9 abre a possibilidade de xenotransplante de rim suíno em seres humanos.




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