‘Saúde é um valor social, não uma mercadoria’, diz professor em debate sobre crise do SUS
13/07/2018
Hospitais de interior fechando as portas, funcionários da saúde com pagamentos atrasados, filas de espera por atendimento aumentando, sobrecarga do orçamento dos municípios para suprir o dinheiro que já não vem da União, crescimento dos planos de saúde, volta epidemias de doenças facilmente preveníveis com a vacinação. Essas são algumas das questões circulando o debate da saúde pública. Se elas já existiam antes, com a aprovação da Emenda Constitucional 55 (antiga PEC 241), apresentada por Michel Temer (MDB), que determinou o congelamento de gastos públicos por 20 anos, o cenário parece ainda mais pessimista.

Nesta quarta-feira (11), a Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Assembleia Legislativa, reuniu sindicatos e entidades ligados a trabalhadores da saúde e hospitais, especialistas e deputados para compartilhar depoimentos e debater saídas urgentes para crise do Sistema Único de Saúde (SUS). No final da audiência pública, o presidente da Comissão de Saúde e Meio Ambiente, deputado Altemir Tortelli (PT), e o presidente do Conselho Estadual de Saúde, Cláudio Augustin, lançaram o Comitê Estadual em Defesa do SUS.

Segundo os proponentes, a nova entidade terá como principal tarefa esclarecer a população sobre as causas da crise de desfinanciamento da saúde pública no Brasil, denunciar os governantes e políticos que propõem e aprovam medidas para sucatear o sistema e mobilizar as comunidades para defender o que consideram um “patrimônio do povo brasileiro”. “Sabemos que o SUS tem suas fragilidades. No entanto, foi o que de melhor conseguimos criar até agora no Brasil e no mundo em termos de atendimento público, gratuito e universal. O SUS é um patrimônio do povo brasileiro e precisa ser defendido daqueles que querem destruir o Estado para favorecer o grande capital financeiro internacional”, disse Altemir Tortelli.

Criado há 30 anos, junto com a Constituição Federal que garantiu direito à saúde a todos, o SUS enfrenta hoje uma de suas piores crises. Para o professor e especialista em saúde coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Alcides Silva de Miranda, é uma transição regressiva, em que o sistema passou a ser complementar ao mercado. Ou seja, onde não haveria lucro no atendimento à saúde, o SUS se tornava a única alternativa.

“O mercado da doença tenta mostrar o SUS apenas pelo aspecto de serviços e procedimentos. Essa é uma visão intencional, ideológica, porque reduz o SUS como política pública. Uma política que está vocacionada para lidar com determinantes do processo, com promoção da saúde para proteger os mais vulneráveis, os mais expostos a riscos. O SUS é uma integralidade, juntando com seguridade social, muito mais abrangente. E o mercado da doença quer resumir isso a um grande plano de saúde que não dá certo. Essa mensagem tenta desqualificar essa política naquilo que ela tem de mais rico, que é a complexidade e a vocação pela equidade”, avalia ele.

Miranda explica que, assim como boa parte dos estruturantes de direitos sociais, o Sistema Único de Saúde surgiu em uma janela de oportunidade. Porém, a conjuntura que se tinha então, não foi capaz de garantir sua consolidação. Conseguiu se firmar no texto constitucional, mas o conjunto de iniciativas que deveriam consolidá-lo teve falhas.

“O que aconteceu, é que ele se implanta, ele dá respostas, mesmo sendo subfinanciado, entretanto, não se legitima socialmente. Porque o valor de uso e o valor redistributivo dele não são reconhecidos. Essa fragilidade tem a ver com não-consolidação e não-legitimação social ao longo dos últimos 30 anos. Entretanto, é uma das poucas políticas públicas que a gente tem no Brasil, que tem um alcance e uma abrangência e valor, com toda dificuldade, com subfinanciamento e problemas de gestão, que ainda nos coloca num grau civilizatório, na possibilidade de ter realmente uma política solidária”, afirma ele.

O professor também defende em sua análise que os problemas vão muito além da conjuntura ou de quem poderá ocupar o Palácio do Planalto. As questões que afetam a eficiência do SUS, segundo ele, estão presentes no cenário nacional há 500 anos, na relação entre Estado e grupos que o “parasitam”, ao mesmo tempo em que denunciam sua ineficiência. Um cenário agravado pela Emenda Constitucional de congelamento de recursos.

“Quando a gente denuncia a emenda, a gente está denunciando a ideia de que o bem público é um valor de mercado, de que a saúde é uma mercadoria. Isso precisa ser trabalhado como um valor social. A saúde é um valor ético e social, não uma mercadoria que pode ser contingenciada por um plano de 20 anos”, diz ele.

O que vem pela frente

A EC 55 reafirma um movimento histórico no Brasil: o desfinanciamento da saúde. Deixar que o mercado e planos privados resolvam, quando o Estado já não atende. Aumentar os recursos para a área já havia sido um desafio em 1988. Quando uma nova nova Emenda foi apresentada em meados de 2013, o problema parecia finalmente estar sendo atacado.

“Mesmo assim, sua regulamentação não foi suficiente, foi muito aquém do que se esperava. O que a EC 95 coloca, que a gente chama da ‘PEC da Morte’, ajuste fiscal, congelamento dos gastos públicos, é justamente o processo contrário do que se esperava. Ou seja, ele vai congelar objetivamente os gastos públicos nos próximos 20 anos, não só da saúde, e vai ter um impacto de imediato no desfinanciamento da saúde”, aponta Jorge Gimenez, educador popular do Centro de Educação e Assessoramento Popular (Ceap).

Em estudos apresentados por ele durante a audiência, calcula-se que, até 2036, prazo de validade da Emenda e quando terminaria o ajuste em teoria, a saúde terá deixado de receber R$ 900 bilhões em recursos. Ao mesmo tempo em que a demanda deve crescer, com o aumento e envelhecimento da população, e a diminuição progressiva dos serviços oferecidos. Uma equação que, na análise do educador, não tem como fechar.

No Supremo Tribunal Federal (STF), existem atualmente três ações questionando a constitucionalidade da EC 55. Outra saída seria a possibilidade de revogação no próximo governo que assumir o Planalto, depois das eleições de outubro.

“É catastrófico o cenário que se verifica para frente. Vai ter uma presença muito mais significativa do capital – sobretudo internacional, porque o governo atual aprovou a participação do capital estrangeiro na área da saúde – então, vai ter uma mercantilização muito maior nessa área. As pessoas vão voltar a vender seu patrimônio para garantir saúde, para pagar os serviços privados e aquilo que o governo chama de gastos menores, [será preenchido] por planos populares. Hoje, se você for ao mercado, já vai encontrar vários planos e serviços por um valor reduzido. Esse mercado vai crescer, porque o setor público não vai atender a demanda”, analisa.

Situações que já estão ocorrendo, de fechamento de hospitais, atrasos de pagamentos, aumento das filas de espera, tendem a ficar piores, seguindo esta análise. Gimenez lembra, por exemplo, que os municípios já sentem a carga dessa conta. O governo do Estado cortou recursos e auxílios, como era o caso do chamado IHOSP (um co-financiamento entre hospitais e governo), e os repasses da União secaram. O que obrigou os municípios a aumentarem a sua participação.

“Eles são obrigados por lei a gastar 15% do orçamento com saúde, mas estão gastando em média 31%. Pelo pacto federativo, eles têm responsabilidade pela atenção básica. O que acontece? Eles aumentam o valor dos gastos, mas não significa que seja nela, porque eles estão tendo que financiar hospitais de baixa e média complexidade. Tem um descompasso gigantesco. A crise nos pressiona a discutir um conjunto de elementos”, afirma Gimenez.

Com a audiência desta quarta, a Comissão encaminhou uma série de questões em seu relatório. Entre elas, uma dada como prioridade: um pedido de investigação ao Ministério Público estadual sobre a situação das filas de espera em unidades de saúde e hospitais.
Fonte: Anahp




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