Brasil lança plano contra superbactérias e hospitais racionalizam antibióticos
09/01/2019

Medidas podem evitar milhares de mortes anuais e poupar recursos

A guerra contra as bactérias e outros micro-organismos está reunindo hospitais, médicos, governo e indústria farmacêutica na mesma trincheira. Com alguns micróbios capazes de sobreviver aos antibióticos mais poderosos já criados, o medo é que as infecções causadas por eles matem milhões de pessoas nas próximas décadas.

O problema já assombra o presente. De acordo com estimativas do governo britânico, 700 mil pessoas morrem anualmente por causa de infecções e, entre 2015 e 2050, o número de mortos em decorrência apenas de infecções por supermicróbios pode chegar a 2,4 milhões, segundo uma estimativa da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

O custo para lidar com esse cenário um tanto catastrófico também seria enorme, de cerca de € 3,5 bilhões (R$ 14,9 bilhões) anuais em média para cada país membro da organização.

Uma estimativa americana aponta que de 20% a 50% dos tratamentos com antibióticos naquele país ou são incorretos ou são desnecessários —ou seja, o remédio é usado para casos mais simples, que não precisariam de antibiótico, ou o remédio errado é usado para tratar determinada infecção.

No Brasil ainda há poucos dados a respeito do tema. A Anvisa monitora desde 2010 as chamadas infecções primárias de corrente sanguínea ocorridas em UTIs de 1.900 hospitais de todo o país, mas o número está longe de representar o total de pessoas acometidas pelos micróbios multirresistentes.

Desde a descoberta da penicilina pelo escocês Alexander Fleming, 90 anos atrás, já se sabe que existem na natureza alguns micro-organismos que são simplesmente imunes a certos antibióticos. Isso significa que, em sua maquinaria celular, esses micróbios dispõem de meios de degradar ou simplesmente se livrar dessas moléculas agressoras.
O problema ganha dimensão se levarmos em conta que essas estratégias de resistência podem ser copiadas e compartilhadas entre as bactérias, gerando organismos multirresistentes.

No fim das contas, os antibióticos, quando mal empregados, destroem as bactérias “mais ou menos”. Sobram apenas aquelas extremamente hábeis e capazes de gerar infecções dificílimas ou até impossíveis de combater com as ferramentas farmacológicas atuais.

A conclusão a que diversos setores chegaram é que é necessário racionalizar o uso das drogas.
Um exemplo já em prática é o da Santa Casa de Santos, que por ser referência da região em casos complexos, tem alto consumo de antibióticos. É sabido, porém, que o ambiente hospitalar é um dos mais favoráveis para as infecções multirresistentes, graças à confluência de doentes.

Uma estratégia adotada no hospital tentou reduzir o tempo de internação dos pacientes. “Eles acabavam ficando muito tempo internados só para fazerem uso do antibiótico, mas o ambiente hospitalar é de risco. A gente sabe que uma pessoa corre mais risco de vida ao entrar num hospital do que ao fazer uma viagem de avião”, afirma a farmacêutica Priscilla Sartori, responsável pelo programa de gerenciamento de uso de antibióticos (ou “stewardship”, no jargão em inglês) do hospital.

A prefeitura da cidade é parceira da iniciativa, aplicando a medicação a domicílio quando necessário. Em alguns casos, o paciente pôde ficar 80 dias a menos no hospital, relata Sartori. Mas há cuidados a serem tomados: “Alta hospitalar não é alta médica. A desospitalização tem de ser feita com qualidade. Se isso acontece, a recuperação no ambiente domiciliar é muito mais rápida.”

Como saldo da iniciativa, que teve início em 2017, mais de mil dias de UTI foram economizados, abrindo vagas para quem mais precisava.

Um dos desafios na hora de fazer a gestão de antibióticos é a especificidade de cada país e hospital. Ana Gales, coordenadora do Comitê de Resistência Antimicrobiana da Sociedade Brasileira de Infectologia e professora da Unifesp, diz que iniciativas isoladas existem há algumas décadas, mas que só há poucos anos começaram a surgir esforços mais coordenados, especialmente na Europa, nos EUA e em outros países como Canadá e Austrália.
“Por aqui eu tenho que informar ao corpo clínico a realidade microbiológica deste hospital, qual é a melhor opção terapêutica para os pacientes daqui, que é diferente do Hospital Oswaldo Cruz, do Hospital das Clínicas da USP e mais diferente ainda de qualquer hospital dos EUA”, explica o infectologista Pedro Mathiasi, que há três anos coordena o programa de stewardship no HCor, em São Paulo.

Ele explica que a cada seis meses ou um ano é preciso fazer um inventário dos patógenos presentes no hospital e descobrir o perfil de resistência deles. Assim é possível descobrir dados valiosos como o fato de 25% das bactérias dali serem resistentes ao antibiótico quinolona —droga muito usada para tratar infecções urinárias. Dessa forma é possível escolher outra droga mais adequada para resolver o problema.

O uso de antibióticos no hospital caiu cerca de 20%; também houve queda no emprego de antifúngicos, de 25%. Na UTI pediátrica a redução chegou a 60%. Além do custo reduzido, há menor chance de efeitos colaterais para quem é tratado dessa forma mais racional.

Tanto a Santa Casa de Santos quanto o HCor contaram com o apoio da farmacêutica MSD, que tem auxiliado hospitais a implementarem seus programas de stewardship, treinando a equipe de profissionais de saúde e auxiliando na implementação de laboratórios de microbiologia —onde os patógenos podem ser identificados, assim como a quais antibióticos eles são resistentes.

Depois de algumas iniciativas setoriais, no último mês de dezembro o Brasil lançou um programa multiministerial para lidar com o tema (ministérios do Meio Ambiente, da Saúde, da Agricultura e Ciência e Tecnologia, entre outros órgãos), delineando uma estratégia que abrange desde a educação dos profissionais de saúde, a promoção de higiene humana e animal e a ação de vigilância sanitária para garantir que as diretrizes serão cumpridas.

Também em dezembro, a Anvisa publicou regras de como interpretar testes de sensibilidade a antibióticos —cruciais para a escolha do melhor tratamento . A orientação é usar a estratégia mais branda possível capaz de matar os micro-organismos.

Outra medida, já em vigor, é a retenção de receita na farmácia a fim de coibir o uso indiscriminado de antibióticos.
Um dos aspectos mais ignorados da questão, conta Ana Gales, é o uso de antibióticos em animais de corte. “Os animais engordam mais e têm menos infecções. Esse uso incorreto na ração, para promoção de crescimento, é pior porque ele se dá em subdose, favorecendo ainda mais a seleção dessas bactérias resistentes.”
A infectologista conta que algumas medidas simples podem ser empregadas pela população, a fim de evitar infecções por organismos multirresistentes. A primeira é evitar idas desnecessárias aos hospitais. Se precisar ir, o recomendável é lavar muito bem as mãos.

Outra recomendação que anda esquecida é se vacinar. Adultos também têm que manter a carteirinha de vacinação em dia a fim de evitar doenças como tétano, pneumonia e febre amarela.

A descoberta de alguns dos principais antibióticos

1909 Salvarsan (Arsfenamina)
Um composto sintético, foi capaz de tratar a sífilis com eficácia pela primeira vez
1928 Penicilina
Primeiro antibiótico de amplo espectro a tratar infecções sérias de estreptococos e estafilococos
1943 Estreptomicina
Marcou o início da era de ouro dos antibióticos, foi o primeiro tratamento para tuberculose
1953 Vancomicina
Um dos antibióticos com eficácia mais duradoura; bactérias resistentes só surgiram depois de três décadas
1962 Quinolonas
Usado em alguns casos de infecção urinária, podem ter efeitos debilitantes graves
1976 Carbapenemas
Ainda relativamente bem eficazes, são os último recurso para tratar muitas infecções
1987 Daptomicina
Uma das últimas classes de antibióticos descoberta





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