Um estudo divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em parceria com o Instituto de Ensino e Pesquisa, mostra um alarmante grau de judicialização das questões envolvendo saúde no Brasil.
O período que vai de 2008 a 2017 registrou aumento de 130% do ajuizamento de ações judiciais envolvendo o direito à saúde, ao passo que outras matérias tiveram aumento de 50% no mesmo período. As ações analisadas englobam toda sorte de demandas envolvendo o direito à saúde, tanto junto ao SUS quantos às empresas privadas de saúde suplementar. Os números apontam para mais de um milhão dessas ações no país.
Em meio a tantos dados que impressionam, vale destacar um aspecto do estudo, que diz respeito ao pouco uso pelos magistrados dos Núcleos de Avalição de Tecnologias e Saúde (NAT), bem como das orientações da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia do SUS (Conitec) e de seus protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas.
Os NAT são núcleos internos instaurados pelos tribunais para apoio e subsídio técnico para as decisões. Há uma média de apenas 7,13% de decisões de 1º grau que utilizam algum desses embasamentos técnicos como fundamentação.
Nessa mesma linha, os magistrados ignoram em suas decisões o conteúdo das listas públicas que compõem o conjunto de tecnologias formalmente incorporadas ao SUS, a saber: Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename); Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (Renases); e Relações Municipais de Medicamentos (Remume). Somente 3% das decisões lançaram mão dessas listas, segundo o estudo do CNJ.
Esses dados são preocupantes na medida em que o magistrado não possui formação especializada na área de saúde, podendo dar azo a decisões impossíveis de serem cumpridas ou fora dos melhores protocolos clínicos. São frequentes as liminares, inclusive em plantão judiciário, determinando o fornecimento de medicamentos importados, às vezes sequer aprovados pela Anvisa, ou de tratamento médico fora dos padrões indicados pelo Ministério da Saúde.
Entende-se o drama dos demandantes e sua busca ao direito à vida e à saúde, que muitas vezes sensibilizam o julgador, porém estes devem ser sopesados com a razoabilidade e os parâmetros regulares das práticas médicas, sob pena de se impor aos planos de saúde um ônus excessivo. Nesse contexto, quais seriam as alternativas para uma redução da judicialização do direito à saúde?
A especialização é um dos caminhos para a equalização. De fato, é uma pena o baixo uso dos instrumentos técnicos pelos magistrados. Os NAT dos tribunais, os núcleos especializados nos Ministérios Públicos e nas Defensorias Públicas e as iniciativas de varas exclusivamente dedicadas ao tema em alguns Estados são indicativos claros de que decisões judiciais mais assertivas e técnicas geram soluções mais efetivas e menos casuísticas, o que poderia levar a uma diminuição de ajuizamento de ações.
Evidente que da mencionada especialização também devem fazer parte a Administração Pública e as empresas privadas, com estruturas para atendimento das decisões judiciais de forma mais célere e eficaz.
Desta forma, os demandantes e as próprias empresas de plano de saúde teriam mais segurança jurídica sobre o que é possível ou não de acolhimento das pretensões. Isso poderia estimular mais soluções amigáveis e redução de ações aventureiras. A segurança jurídica também pode ser ampliada com uma ênfase na adoção, pelos magistrados, dos enunciados das Jornadas de Direito à Saúde promovidas pelo Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde, criado pelo CNJ justamente para uniformizar entendimentos sobre matérias recorrentes. A pesquisa divulgada pelo CNJ demonstra sua baixa utilização pelos julgadores.
A criação de centros de mediação ou outros instrumentos pré-processuais são outra oportunidade para a redução da judicialização. Iniciativa como o “Centro de Integração Online”, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, para solução de conflitos de saúde em até 3 horas, em parceria com as operadoras de planos de saúde, por meio de aplicativos, é um bom exemplo.
Outra alternativa para reduzir a judicialização é autorizar a criação de uma diversidade maior de coberturas para os planos de saúde hoje oferecidos pelas empresas. Deste modo, o consumidor poderia escolher o tipo de atendimento pretendido e pagar um valor mais justo por isso. Hoje se tem um quadro em que os clientes são basicamente igualados, com distinção entre os produtos, grosso modo, entre os níveis hospitalar ou ambulatorial. Com a segmentação, o cliente saberia, de antemão, o que pode ou não pode usufruir.
Isso poderia levar a uma diminuição de ações judiciais e do próprio valor do serviço. Afinal, as empresas repassam tanto o custo exigido para lidar com o excesso de demandas, quanto o que envolve o cumprimento de decisões judiciais, seja na qualidade da obrigação imposta, seja no valor usualmente atrelado a multas pela demora no cumprimento da decisão judicial e a indenização por danos morais.
Toda essa discussão, no entanto, é paliativo para o fato que a efetivação do Direito à Saúde passa pela formulação e execução de políticas públicas aptas a implementarem tal direito para toda a população. Enquanto os anseios sociais não forem providos satisfatoriamente, a discussão sobre judicialização da saúde, ainda que em menor grau, estará em debate.
Luciana Freitas é sócia da Miceli Sociedade de Advogados