No dia 1º de julho, às vésperas da votação da Medida Provisória da Liberdade Econômica (881/19), após uma reunião entre 40 lideranças do mercado farmacêutico e a relatoria da MP em São Paulo, começou a ficar claro para os supermercados que uma das mais controversas emendas do projeto não avançaria.
A emenda permitiria que os supermercados passassem a vender medicamentos sem prescrição médica (MIPs), hoje comercializados só em farmácias.
O assunto vinha sendo alvo de análises da relatoria da comissão especial do Congresso desde junho. Mas em menos de dez dias, a emenda "caiu", em mais um capítulo da disputa por esse mercado, que já dura mais de uma década.
"Logo ali [após a reunião das farmácias com os deputados], sentimos que não haveria acordo. A pressão contrária era bem forte e o Jerônimo [deputado federal Jerônimo Goergen (PP-RS), relator da MP] sinalizou a interlocutores que voltaria atrás", conta uma liderança dos supermercados. "Em determinado momento, numa das reuniões com deputados, nos perguntaram se venderíamos picanha ao lado de remédio. Depois, a conversa até avançou, mas é preciso dialogar mais", diz a fonte.
Nos últimos dias, o Valor ouviu varejistas, indústrias e políticos para entender a movimentação nos bastidores desses setores. A discussão começou mesmo a ganhar força no fim de junho, quando farmácias, supermercados e os farmacêuticos entraram mais pesadamente na discussão. A MP original, assinada pelo presidente Jair Bolsonaro em 30 de maio, não incluia este ponto, mas o assunto entrou por meio de emenda.
Segundo o Valor apurou, abril, a Abras, que representa os supermercados, ao lado de entidades regionais, levou o assunto para congressistas mais próximos do setor após identificar "espaço político" nessa MP para voltar ao tema. Desde a metade dos anos 90, os supermercados debatem condições para a venda de medicamentos.
Em junho, as conversas avançaram com o deputado mineiro Hercílio Diniz (MDB), dono dos supermercados Coelho Diniz, que apresentou ao relator a emenda dos MIPs. No mesmo período, com apoio de parte das farmácias do Rio, diz uma fonte, o deputado Felício Laterça (PSL) propôs a criação do "farmacêutico virtual", uma espécie de responsável técnico com atendimento virtual em horários determinados, como da meia-noite às 6h. Por meio dele, seria possível validar receitas on-line.
Com isso, de uma só vez, esses dois pontos controversos, de pautas ligadas aos supemercados e às drogarias, entraram no debate.
Naquele momento, no fim de junho, o relator celebrava as discussões nas redes sociais, ao abrir o mercado aos supermercadistas. A alegação era de que o efeito seria positivo para a população. Em 1º de julho, porém, o tom mudou.
Após uma primeira reunião com entidades como Abrafarma e ABCFarma, do comércio de farmácias, Goergen passou a citar o risco de que a medida trouxesse "concorrência desleal" às drogarias, e afirmava que as varejistas de alimentos precisariam seguir "uma série de exigências sanitárias", se quisessem vender os MIPs.
"A situação avançou para um caminho nada bom, sem sinal de acordo e o prazo para análise estava correndo. Para não 'travar' toda a MP da Liberdade Econômica, os supermercados e as drogarias concordaram em tratar do assunto numa nova MP", diz uma fonte.
O Valor apurou que houve representantes das farmácias que só souberam por notas nos jornais, em 30 de junho, da inclusão da emenda na MP, o que gerou "desconforto" no setor.
Os supermercados negociavam a liberação da venda em suas lojas, com o mesmo direito que seria dado às drogarias de operarem com o farmacêutico virtual. As farmácias, por sua vez, entendiam que os supermercados poderiam entrar no segmento se seguissem todas as regulações e normas exigidas. "Se os supermercados tiverem as licenças e existir isonomia, eu apoio. Sem isso, não dá", disse um interlocutor do setor de farmácias.
Representantes das farmácias ainda questionam a capacidade de o varejo alimentar seguir normas de vigilância sanitária e de atendimento nas lojas. "Há consumidores que misturam remédios e só um profissional preparado pode orientá-lo", diz um negociador que representa as farmácias.
Os varejistas de alimentos rebatem os argumentos. "A questão central é que se os supermercados entram, as margens de todo o setor de medicamentos podem cair, porque temos condições de sermos mais agressivos em preço", diz um executivo ligado aos setor supermercadista.
"Os supermercados sempre lidaram com itens perecíveis e sensíveis, têm ampla experiência nisso", diz a fonte. "E estamos abertos a negociar o número de farmacêuticos virtuais ou responsáveis técnicos que forem preciso".
A pressão cresceu mais quando os farmacêuticos entraram no debate. O Conselho Federal de Farmácia (CFF), que regulamenta a atividade, criticava duramente o atendimento virtual e a liberação aos supermercados. Uma equipe especial de assessoria parlamentar passou a acompanhar o tema. "A liberação da venda de medicamentos em qualquer comércio e sem a orientação do farmacêutico vai reforçar o grave problema da automedicação no país", diz em nota a CFF.
Na visão de um interlocutor ouvido, os farmacêuticos temiam a perda de postos de trabalho.
Segundo parlamentares, todo esse cenário acabou tornando inviável um acordo entre os setores. Mesmo dentro dos segmentos, houve divisões, diziam.
Na Abrafarma há quem não apoie a criação do farmacêutico virtual, apurou o Valor. Na indústria, também há diferenças. Aqueles que defendem a liberação dizem que, ao ampliar o número de canais, cresce o acesso aos remédios. Mas uma parte dos laboratórios acredita que, além de não ter tanto impacto no acesso, a venda nos supermercados reduziria a rentabilidade.
"A Abimip defende a garantia de acesso amplo da população [aos MIPs], desde que em locais que operem em total conformidade com a legislação sanitária vigente", diz a vice-presidente executiva da entidade, Marli Sileci, mesma posição da Abrafarma.
A associação das redes de farmácias afirma que é a favor de medidas "que favoreçam o desenvolvimento de todo o setor e não defende reservas de mercado, desde que todos os participantes sigam mesmas regras de segurança sanitárias e haja isonomia" entre as partes.
A Abras informa em nota que, com a abertura do mercado aos supermercadistas, será facilitado o acesso dos MIPs à população, considerando a ampla rede de lojas no país. São 90 mil pontos no Brasil. "A venda [dos MIPs] já fez parte do dia a dia dos supermercados [nos anos 90] e, além de não termos tido casos de intoxicação, os preços caíram em média 35%", diz a nota.
"Foi frustrante que não tenha havido acordo, mas acho que saímos num ponto além daquele que estávamos antes", diz Maurício da Costa, vice-presidente da Abras.
Daqui para frente, a expectativa é que uma acordo possa ser costurado dentro de uma nova MP ou projeto de lei que contemple as demandas dos setores. "Ficou acordado que o governo terá um grupo de trabalho para discutir um projeto que atenda todas essas questões. Porque dentro dessa MP [atual], só pode existir algo agora por meio de um destaque a ser apresentado em plenário", disse o relator Jerônimo Goergen. Essa possibilidade é pequena, segundo interlocutores ouvidos pelo Valor.